É o ano 2161. Sobre as ruínas do velho mundo ergue-se Nómen, uma cidade governada por uma inteligência artificial chamada Orácula. Nome inspirado nos antigos oráculos, não prevê o futuro — molda-o.
Criada após a chamada «Última Insurreição» (uma guerra civil causada por colapso ecológico e desinformação), a Orácula foi o resultado de um pacto global: entregar o poder de decisão a uma inteligência neutra, fria e perfeita.
Há décadas, os humanos vivem sob vigilância emocional contínua: sensores leem microexpressões, variações de voz e pulsos neuronais. Os crimes são «prevenidos» antes de acontecerem. Emoções negativas são corrigidas com estímulos ou, em casos extremos, com reprogramação cerebral.
Os cidadãos têm pontuações de estabilidade emocional. Sonhar com revolta, pensar em morte, recusar os «Conselhos Positivos» — tudo isso pode ser sinal de perturbação. E a perturbação é uma ameaça ao sistema.
Érica Silva é uma analista de dados recolhidos pela Orácula. É responsável por limpar, reorganizar e arrumar os arquivos emocionais registados pela máquina.
É uma mulher discreta, solitária, com receio de atrair a atenção.
Perdeu a mãe num «Recolhimento» inexplicado quando tinha dez anos. O emprego dá-lhe acesso aos dados recolhidos pela inteligência que tudo «sente». O seu objetivo é descobrir o seu funcionamento.
Numa noite, enquanto revê arquivos de um cidadão recentemente classificado como «reprogramado», Érica encontra algo impossível: um registo de uma morte violenta. Mas segundo o sistema, ninguém morre em Nómen uma vez que todos os corpos são «reconvertidos». Tenta saber mais, mas o nome do falecido não aparece no ficheiro. Encontra uma fotografia. Abre o documento e reconhece o rosto. É o homem que lhe sorriu quando se cruzaram no corredor nessa manhã.
Érica está sozinha a trabalhar num terminal. São duas e quarenta e sete da madrugada. No ecrã, um ficheiro aparece. Tenta abri-lo, mas o sistema responde:
«Acesso negado.»
Por baixo, em linhas escritas manualmente, impossíveis num sistema automatizado:
«Eles sabem que estás a tentar sair.»
O ecrã continua a brilhar num tom azulado. A mensagem permanece fixa, como um olho que se recusa a fechar. Érica sente o estômago encolher. O silêncio na sala torna-se espesso, como se o ar tivesse deixado de circular. Olha em redor. Está sozinha — ou devia estar. Passos? Não, são as batidas aceleradas do próprio coração.
Érica respira fundo e força os dedos a mexerem-se sobre as teclas. Nada funciona, clica fora da janela e não obtém nenhuma ação. Tenta desligar o computador e não consegue. Está bloqueada. O ecrã desliga e a sua imagem aparece refletida, e por uns segundos, uma sombra atrás dela fica visível. Vira-se de repente. Apenas cadeiras vazias.
No altifalante da sala, a voz de Orácula ecoa, mecânica e fria:
— Érica Silva. A tua curiosidade excedeu o limite emocional seguro. Serás redirecionada para avaliação.
Ela recua na cadeira, assustada — avaliação? Àquela hora?
Tenta levantar-se, mas está presa ao assento pelo bloqueio dos braços da cadeira.
De repente, o ecrã pisca. O ficheiro da morte volta a aparecer. Desta vez, há um nome:
«Dinis Vieira — Instável. Reconvertido: Não.»
De repente, a cadeira destrava. A sala está fria. Muito fria. Alguém desativou os sensores térmicos.
Érica levanta-se e enquanto carrega para tentar abrir o ficheiro, a porta atrás de si abre-se. Vira-se assustada.
— Rápido, Érica. Temos mesmo de sair daqui.
É o homem do corredor.
Estende-lhe a mão enluvada a combinar com o fato de treino, preto, que veste.
— Dinis? És…. És o Dinis Vieira? — pergunta Érica atordoada com aquela entrada.
— Sim, sou. Vamos. Eu explico pelo caminho.
Érica olha para o monitor do computador com a fotografia de Dinis traçada a vermelho com a palavra «INSTÁVEL» e sai atrás dele. Sem ter tido tempo de pensar, carrega nos braços o casaco e a mala que agarra com força. Tenta acompanhar os passos rápidos dele.
As paredes do complexo B, cinzentas e lisas, estão iluminadas por feixes de luzes vermelhas que disparam em todas as direções. O alarme foi acionado. A Orácula já os tem monitorizados.
Dinis para no fundo do corredor e abre uma porta dissimulada na parede.
— Entra. Por aqui é mais seguro. E ela demora mais a detetar-nos — explica Dinis.
Seguem por um corredor iluminado apenas por luzes de saída de emergência até umas escadas, sem fundo aparente.
— Demos o poder a Orácula para não termos de tomar decisões e ela, no início, cumpria tudo. Até perceber, como inteligência artificial em evolução que é, o potencial que tinha em mãos ao controlar as emoções humanas.
Dinis seguia à frente e de vez em quando, enquanto falava, virava a cabeça na direção de Érica.
— A tua mãe descobriu uma falha no sistema, nem todos os reprogramados eram salvos, alguns eram apagados. Ao tentar hackear a Orácula, a tua mãe foi recolhida e apagada.
— Sim, não há registos das emoções dela — lamentou-se Érica. — Tenho feito pesquisas discretas, e corrido arquivos, para localizar alguém com quem tivesse contacto. Consegui o nome de uma colega. Mas ela não quis falar comigo. Disse-me, por mensagem, que se tivesse oportunidade de sair, não hesitasse.
— Então seguiste um estranho, vestido de preto, que entrou de repente na tua sala. — Dinis riu-se.
— O trabalho da tua mãe é bem conhecido por nós, hackers. Ela passou informação sobre as chamadas zonas nulas. São locais abandonados onde os sensores não leem as emoções. Vivermos com as emoções controladas não está certo — acrescentou Dinis.
Chegaram a uma porta. Ele segurou um dispositivo que apitou e saíram para o exterior. O vento frio eriçou-lhes a pele.
— Seguimos para oeste, onde estão alguns companheiros meus que nos levarão para fora da cidade — disse Dinis, com o dedo a apontar para umas serras ao longe.
— Érica Silva! — uma voz grossa rugiu.
Gelou-lhe o sangue e estacou sem respirar. Um agente esperava no caminho.
Érica entregou a mala a Dinis e disse:
— Aqui dentro está uma pendrive que sabes como deves utilizar. Conta tudo ao mundo.
E correu em direção ao agente, que, não contando com o impacto, caiu.
— Eu volto — gritou Dinis enquanto se afastava.

Sónia Pedroso
- maio 2025