Levou as mãos enfarinhadas à massa fresca que se preparava para estender. Ao longo de trinta anos de casamento, nunca lhe falhara o tempero — não que o marido algum dia fosse notar a diferença, tivesse mais ou menos noz-moscada.
Acalentava-lhe o coração saber que era uma receita da nonna Gia. Permitia-lhe guardar com carinho a herança italiana, uma lembrança de casa na Austrália distante, ou um pedacinho que era só dela, sem ter de dividir com mais ninguém.
Partira jovem atrás do amor e com o fruto do mesmo na barriga, resultado da paixão veranil vivida na costa italiana. Hobart era uma cidade portuária, por isso, quando chegou àquela ilha nas entranhas da Oceânia, o choque foi menor. O cheiro da maresia e as redes esticadas ao sol eram-lhe familiares e traziam-lhe alguma tranquilidade.
Naquele dia, a filha — agora mulher feita — ia receber amigos em casa e havia encomendado à mãe, como de resto era hábito, um jantarzinho simpático. Mas ela que fosse atenta nas horas e deixasse a refeição pronta para entrar no forno, de preferência cedo, para não atrapalhar a filhota que tanto se esmerou por impressionar terceiros.
Menina dos seus olhos, vivia mesmo ao fundo da rua e, apesar de casada, com posição de sucesso e proprietária de casa própria, a sua menina era ainda muito necessitada de sua mamã. Refilava o marido que a senhora lhe dava demasiado colo, que já não estava na idade. Mas não fosse pelos pequenos favores que ia cedendo à filhota, em que ocasião a via?
Sempre a correr, sempre com algo para fazer, tudo era prioritário e tudo para ontem. Com a exceção da senhora sua mãe: bastião de estabilidade, boia salva-vidas e colchão onde amparar as quedas, a quem concedia alguns segundos do seu tempo quando a colheita de favores estava madura e pronta para ceifar.
Terminada a tarefa de estender a massa, a senhora lavou as mãos demoradamente, observando a vizinhança pela pequena janelinha da sua cozinha, local onde passava a maioria do tempo, ora a cozinhar para os seus, ora a limpar o que havia sujado e retirado de sítio.
Era uma senhora muito prendada, a mãe ensinara-a assim. Ultimamente, lembrava-se muito da sua mãe, sentia-se um reflexo da mesma. Copiava-lhe os gestos, as rotinas e até os suspiros:
Tudo eu nesta casa. Tudo eu…
Apesar de ser um clone da sua mãe, um pensamento assombrava-a desde que vira aquele rosto pálido engolido por Morfeu para não mais acordar: Quem era a minha mãe? Do que gostava, ou o que fazia nos seus tempos livres? Que sonhos tinha?
A senhora nunca sabia responder. Engasgava-se no pensamento e na garganta, pois sendo ela uma cópia perfeita de senhora sua mãe, mulher prendada e cuidadora… Quem era ela? Do que gostava, ou o que fazia nos seus tempos livres? Que sonhos tinha?
— Marido? — chamou espreitando para dentro da sala e deixando que a sanca branca da porta ocultasse parte do rosto.
— Hmmm?
— Qual achas que é a minha flor favorita?
— Que pergunta é essa agora? — despachou ele sem retirar os olhos do noticiário. — Olha lá, já tens o comer pronto para levar à tua filha? E a janta, é o quê?
Retraiu-se cerrando os dentes, esquecera-se de que tinha de ser mãe e esposa. Porém, pensou que talvez gostasse de tulipas, parecia-lhe uma boa flor para se gostar.
Rapidamente voltou para o seu reino, pois o forno já a convocava outra vez. Reclamava o ponto da temperatura. Duzentos graus — o bolo já podia entrar para crescer e depois ser devorado numa gula que não se detém com agradecimentos, mesmo tendo as vontades saciadas.
O próximo passo seria preparar o molho pomodoro. Ao iniciar o seu refogado, a senhora prendada percebeu que não tinha tomates frescos. Que erro imperdoável! Iria atrasar tudo e a filhota ficaria desiludida. Ecoava-lhe na cabeça uma frase que a sua mãe lhe dizia constantemente: Não sejas um peso, menina. Sê uma almofada.
Tenho de ser uma almofada… uma almofada.
Resoluta em não apoquentar ninguém, pegou nas chaves do seu velho carro e pôs-se a caminho do supermercado mais próximo. Não era longe, com certeza regressaria a tempo de concluir o prato que havia prometido à menina dos seus olhos. Nem o cartão do seu marido solicitou, ser almofada, como senhora cuidadora, tinha as suas poupanças em dia, o necessário para fazer face a pequenas emergências como aquela.
De mãos no volante ia admirando como a cidade se havia desenvolvido a um ritmo efervescente. Grandes placares publicitários erguiam-se sobre as estradas e as redes de pesca esticadas ao sol davam lugar a faixas coloridas incitando o consumo. Prédios altos pintavam o horizonte de cinzento, quando em tempos o azul do céu se deixava refletir no mar. Como é que uma pequena cidade perde a sua identidade em trinta anos? Pensamentos que iam arrancando a paz da senhora às colheradas, assim como a gula individualista lhe comia sempre os bolos.
Ser almofada.
Deixou-se ser conduzida como de resto era hábito. Seguiu sem grande destino, mas com um em mente, sabendo que era lá que encontraria os tomates mais frescos e um sabor mais autêntico.
Ser almofada.
A senhora saiu do carro e entrou no terminal. Cheirava a combustível e ouviam-se os grandes pássaros metálicos a levantar voo. Ali vendia-se o mundo.
Debruçada sobre o balcão das partidas, perguntou onde poderia encontrar os melhores tomates. Tomates que o fossem de verdade — não queria pastas, nem polpas, nem o tenebroso ketchup. Queria tomates, com todas as sementes a que tinha direito, com marcas de sol e de preferência plantados entre tulipas. Havia também decidido naquele instante que o bolo poderia passar um pouco do ponto.
Mais tarde, ninguém se lembrará de ter visto a senhora embarcar no voo no aeroporto de Hobart. Mas, na cozinha, cheirava a queimado e, naquele dia, ninguém serviu o jantar.

Bárbara Rafael
- abril 2025