Herança de papel e tinta

A chuva miudinha tamborilava contra a janela do pequeno estúdio. O vento sussurrava entre as frestas da porta, emitindo um leve gemido fantasmagórico. O ar tinha um cheiro familiar, uma mistura de papel envelhecido, tinta seca e um leve resquício do perfume do pai, impregnado nos móveis e na poltrona onde ele sempre se sentara.

Clara passou a mão sobre a mesa de desenho do pai, agora coberta de pó e de silêncio. Fora ali que ele passara tantas noites, dobrado sobre as pranchas, criando mundos de tinta e papel. E agora, restava um vazio.

Foi então que viu o livro. Uma pilha de folhas, desenhos a lápis, alguns traços definitivos a tinta, mas muitos balões vazios, sem palavras.

Uma história suspensa.

Com mãos hesitantes, folheou as páginas. A forma como o pai, esboçava emoções nos rostos e o jeito cuidadoso de sombrear. Algo a intrigava, as personagens pareciam-lhe familiares.

 Na primeira página, um homem e uma menina de mãos dadas atravessavam uma rua de paralelepípedos. Ela estudou melhor os pormenores e sentiu um nó na garganta. A menina era ela.

O homem… era o pai.

Devorou as páginas seguintes. Lá estavam fragmentos de memórias transformados em janelas, uma ida ao parque, o som das folhas secas, uma noite de tempestade em que ele a acalmara com histórias sussurradas ao ouvido, os serões em que inventavam histórias antes de adormecer. À medida que avançava, os desenhos tornavam-se esboços, como se o tempo não tivesse sido suficiente para os terminar.

E então, viu a última página. Inacabada.

O pai desenhara uma cena de despedida. A personagem que era ele, parecia segurar algo nas mãos, oferecendo-o à filha. Mas os contornos eram incertos e o que quer que fosse, permanecia um mistério. Clara sentiu-se afundar na cadeira. O que tentaria ele dizer-lhe? O que ficara por completar?

O peso da saudade apertou-lhe o peito. Havia também um amargo travo de culpa, de uma ausência que agora parecia insuportável. Há quanto tempo não via aqueles desenhos? Há quanto tempo se afastara daquele mundo, que o pai tanto tentara partilhar com ela?

Lembrou-se das vezes em que recusara ver as novas páginas que ele lhe mostrava, das ocasiões em que respondera apressadamente, alegando estar ocupada. O tempo sempre pareceu infinito… até deixar de o ser. Agora, as oportunidades estavam presas e restava-lhe um livro incompleto.

Pegou num lápis e passou o dedo sobre o papel, como se pudesse tocar na ausência. O que significava realmente continuar aquela história? Era só uma questão de terminar os desenhos ou havia algo mais profundo a ser compreendido?

Fechou os olhos por um momento e deixou que as memórias se espalhassem pela mente. Lembrou-se das noites em que o pai lhe dizia que os heróis nunca desaparecem, apenas mudam de forma.

E então, recordou uma história em particular. Era uma noite de verão, Clara tinha oito anos e o pai, sentado à beira da cama, desenhava à medida que inventava uma história. Era sobre uma rapariga que encontrava um caderno mágico. Tudo o que escrevesse nele, tornava-se realidade. Contudo havia uma regra, só podia escrever verdades. Se mentisse, a tinta desaparecia. Clara lembrava-se de ter ficado fascinada. «”E se eu escrever que sou uma princesa guerreira? »”, perguntara. O pai sorrira e respondera: «”Se no teu coração acreditares que és, então será verdade.»”

Agora, de regresso ao presente, Clara sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. A metáfora nunca lhe parecera tão clara. O pai deixara-lhe uma história inacabada, cabia-lhe a ela continuar. Isso significava mais do que simplesmente completar as páginas. Significava escrever a verdade.

E qual era a sua verdade?

Que sempre admirara o pai, mas nunca lho dissera com a intensidade merecida. Que sempre quisera fazer parte daquele mundo de desenhos, mas convencera-se de que não tinha talento suficiente. Inspirou fundo e, com mãos trémulas, pegou na caneta. No balão vazio, escreveu as palavras que sabia que ele queria dizer-lhe:

«”A herança mais preciosa não se mede em ouro, mede-se nas histórias que partilhamos.»”

Ao terminar, Clara sentiu um peso a desprender-se do peito. Olhou para o livro e, pela primeira vez desde que entrara no estúdio, sentiu-se acompanhada. O pai estava ali, nas linhas, nas sombras. E de repente, soube o que fazer.

Pegou num lápis e começou a desenhar.

Sem pressa, traçou os contornos da última página, continuando o que pai iniciara. O objecto que a figura paterna lhe estendia tomou forma aos poucos. Dentro, Clara desenhou uma página em branco. E então, no último balão de fala, escreveu uma frase simples, mas cheia de significado:

«”Agora, é a tua vez de contar a história.»”

Ao fechar o livro, Clara percebeu que, embora o pai tivesse partido, a sua voz permaneceria viva através das histórias que deixara e das que ela ainda escreveria.

Com um suspiro profundo, pegou num velho estojo de lápis de cor, ainda com o cheiro da infância. Abriu uma nova página em branco e começou a desenhar. Primeiro um traço tímido, depois outro, até as linhas começarem a formar imagens e memórias reinventadas.

Horas se passaram sem que Clara reparasse. E ao terminar a sua primeira janela, sorriu. O ciclo não se fechava. Continuava. A história do pai agora também era sua.

Dias depois, Clara decidiu levar o livro a uma editora, um pequeno espaço que o pai sempre mencionara, mas nunca tivera oportunidade de visitar. O editor de olhar atento e sorriso caloroso, folheou as páginas com genuína admiração.

«”Há aqui algo de especial»”, disse ele. «”Algo que merece ser partilhado.»”

Meses depois, Clara segurava entre as mãos um livro impresso, com o nome do pai e o seu na capa. Uma homenagem através da arte.

No dia do lançamento, sentada numa mesa rodeada de leitores, Clara autografou os primeiros exemplares. Quando levantou os olhos, teve a sensação de ver, por um breve instante, o reflexo do pai na vitrina da livraria, sorrindo para ela, orgulhoso. E, com o coração leve,

Clara sorriu.

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Lara Fernandes

Texto Vencedor

Eu, Nellie Bly

Entrei. Sinto as olheiras e os olhos afundados no rosto. Tento manter o olhar distante, como se de loucura se tratasse. Tenho um receio enorme de ser descoberta no teatro que represento.

Tudo é branco à minha volta. Paredes, mesas, cadeiras, ombreiras das portas, as severas fardas das enfermeiras de olhar sisudo, assim como do médico que me dá a mão para me transportar por corredores brancos infinitos, até me depositar num quarto branco, numa cama de lençóis e coberta branca, pequena mesa de cabeceira branca, farda grosseira de tecido áspero e remendado, e um par de chinelos de quarto grosseiros e desgastados.

Sento-me devagar à beira da cama de olhar fixo na parede à minha frente, e aguardo que termine a retórica das conveniências e as regras a implementar no meu dia a dia. O médico sai, fechando a porta atrás de si, e deixo cair os ombros sem, no entanto, movimentar a cabeça. Sei que me observam. Sinto, sim, tenho a certeza disso.

Foi uma decisão de última hora. Como jornalista neste estado norte-americano, muito mais à frente do que o resto do mundo, ou assim se descreve o nosso estado perante o restante universo mundial, tenho a sensação de que fui longe demais.

 Mesmo com um ultimato de apenas dez dias à restante equipa, e com tudo o que descobri como jornalista, muito provavelmente não sairei daqui a mesma Nellie que sou hoje. Porque, na verdade, acabei de entrar.

São oito e pouco da manhã, disso tenho a certeza. Sinto o corpo a tremer da adrenalina que não controlo, embora eu tente à viva força disfarçar. Deixo-me estar sentada na beira da cama, ajeitando-me um pouco para ficar mais confortável. Conforto que tenho a certeza que vai descambar rapidamente, ou não estaria eu aqui para me certificar que as minhas pesquisas sobre este hospital psiquiátrico se reduzem apenas a uma veracidade aterradora.

Ouço gemidos ao fundo do corredor. Vêm de várias portas fechadas,  assim me parece. Engulo em seco e aguardo. Sons de passos aproximam-se da porta do meu quarto. Pela visão periférica, vejo a maçaneta da porta rodar, e depois abrir-se devagar. Não olho, não posso perder a postura tantas vezes ensaiada no meu quarto.

Uma bata branca imaculada aproxima-se de mim. Uma coifa na cabeça impecavelmente engomada e endurecida pela goma que a encharcou a frio, e pelo ferro quente que a moldou. Botas pretas de couro bem cuidadas pelo excesso de banha diária.

Mantenho a minha posição inicial, como se a minha vida fosse apenas um ponto destacado na parede branca à minha frente. Sinto o meu braço esquerdo ser levantado e de uma forma derradeira, puxar o restante do meu corpo para me elevar. A voz ecoou no silêncio da minha mente.

— A menina deve acompanhar-me para o seu primeiro exame. Mude de roupa imediatamente. Volto daqui a cinco minutos.

Faço questão de me trocar desconfortavelmente para o trapo exposto em cima da cama, e volto a sentar-me na mesma posição.

Volta. Deixo-me levar pela mão fria, desnuda do pulso às falangetas, com nós dos dedos evidentes, e que dolorosamente magoam os meus pelo excessivo aperto. Tento desempenhar o meu papel o melhor possível, sempre no maior silêncio. Pelo infindável corredor, mulheres acompanhadas por mais coifas que as amparam com destino desconhecido. Os chinelos das pacientes mal abafam o som arrastado dos  passos, enquanto as botas escuras das enfermeiras ecoam autoritárias pelos corredores frios. Estes são os únicos elementos escuros num ambiente gélido, vestido de branco.

De frente para a porta, à esquerda, a enfermeira bate com brusquidão, fazendo com que as minhas retinas dilatem de pavor. Do outro lado ouve-se:

— Entre!

E nesse ainda lúcido momento, faço alguma pressão para atrasar a entrada, apenas para impor ao meu cérebro que hoje é dia 25 de setembro de 1887 e o meu nome é Nellie Bly. Frase que vou repetindo em silêncio até me inserirem na banheira desnuda no meio do quarto.

Hoje é dia 25 de setembro de 1887, e o meu nome é Nellie Bly.

Agonizo enquanto vários baldes de água fria disfrutam do calor do meu corpo. Pedras de gelo acompanham-na, boiando ao nível da água que me mergulha cada vez mais. É irresistível não gritar e irresistível não tremer de um frio nunca sentido na pele, nos ossos e já na medula incapacitada de movimento.

Hoje é dia 25 de setembro de 1887, e o meu nome é Nellie Bly

A porta fecha-se com força. Estou deitada na cama do quarto em que me alojaram. Reteso o corpo na posição fecal e sopro no meu colo um folego de calor aquecido pelas entranhas que se revoltam consideravelmente com a experiência. Continuo azulada na pele e com imagens distorcidas na mente, embora ainda consiga saber quem sou e em que dia estamos. Alucino entre a dor e o frio. O trapo molhado que me envolve consegue estar mais quente que eu. Recordo o embalar da minha mãe aquando pequena e, por momentos, deixo o calor da memória envolver-me e salvar-me.

Acordo de sobressalto com a porta a abrir e a bater na parede. Um tabuleiro é colocado agressivamente na mesa de cabeceira branca. Faço um esforço para recapitular quem sou, embora já sem a certeza do dia em que me encontro. Nados mortos esvoaçantes a bailar no prato de uma sopa suja. Ao lado, um cheiro nauseabundo de uma carne esverdeada pela degradação do tempo, e à beira desta um pedaço de pão bolorento.

Um puxão de cabelo surge no meu coro cabeludo e uma voz grave murmura-me ao ouvido:

— Come tudo e serás uma linda menina!

Dez dias internada no asilo, sujeita a atrocidades diárias, apenas para provar os abusos e condições desumanas, aplicadas às mulheres da época.

«Sou Nellie Bay, mas não sei de onde venho…»

Considerada insana.

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Susana Menezes Forte

Texto Vencedor

Nos sonhos comandamos nós

Ela despertava-me uma grande curiosidade. A minha família falava dela com saudade e chamava-a poeta. A pergunta que me fazia a mim mesmo, mais do que uma vez por dia, especialmente quando a ouvia gemer, era: como podem as criaturas belas não andar? Ou como pode um poeta não conseguir falar? Interessava-me por tudo o que estivesse relacionado com aquela pobre alminha, como também era chamada lá por casa.

Por vezes, fingia estar atento às pinturas e mirava a minha mãe, com voz doce e terna, sem pressa, abrir a porta e anunciar-se: mãezinha, trouxe-lhe o almoço. Depois, fechava a porta atrás de si. E eu ficava arreliado com a angústia de não a ter conhecido.

De tanto desejar ver a poeta, levava-a comigo nos sonhos. Povoávamos coretos, descia escorregas com ela sempre a amparar-me a queda. Nos meus sonhos, a mãe da minha mãe não tinha cabelos de algodão, nem pele translúcida e mãos com linhas roxas. Sonhava-a de cabelo armado e unhas pintadas de prata. Para mim, era um princípio simples, nos meus sonhos, quem comandava era eu.

Sabia o que se passava em casa e aquilo que me escondiam. Ouvia soluços à noite perdidos na escuridão, faíscas de dor que corriam pelos corredores de casa e se instalavam aos pés da cama, implorando por uma solução. Como criança, não tenho todas as soluções do mundo, mas sei que a minha mãe, nestes momentos, precisava tanto de um abraço como aqueles que ela me oferecia quando eu acordava a meio da noite com um pesadelo.

Um dia perguntei: porque não me deixas ver a avó?

­Porque a avó está doente.

­Mas quando eu estou doente os tios vêm-me visitar.

­A doença da avó é na cabeça. Quero que te lembres dela como era antes de ter ficado assim.

Fiquei mais descansado com a conversa, porque vi sinceridade debaixo daquelas cortinas de água. A minha mãe desconhecia que tenho modos particulares de atuar. Assim, após ajoelhar-me ao lado da cama a rezar ao meu anjo da guarda, chamava pela avó Lurdes e pedia para que entrasse nos meus sonhos.

E ela entrava. Tínhamos longas conversas sobre a escola, sobre o passado dela e da minha família. Pedia-lhe para me descrever momentos felizes porque me faziam rir. Em todos esses momentos, a família estava completa e sorridente. Às vezes, a poeta sentava-se num baloiço ao meu lado, com as sabrinas beges a cortarem o ar, a saia comprida a ganhar volume, o cabelo a afastar-se do rosto, enquanto balançava. E não há como uma mãe para servir tanto de confidente como delatora. Levou-me pela mão a visitar a filha criança, o joelho esfolado na primeira vez que usou uns patins, o choro esganiçado de menina mimada que não sabia que era feliz. Nos sonhos, acompanhou-me pelo bairro onde morava, comprou-me pirulitos feitos pela Dona Fátima no carrinho dos doces e víamos formas de animais nas nuvens. Por fim, embalava-me no colo e dizia-me, não te esqueças de ser a voz do nosso amor.

Depois, acordava, nos meus lençóis do Harry Potter, a saber que a poeta tinha poetizado comigo durante a noite. Preenchia os vários cantos do quarto do neto. Aquela pobre alminha que ­ afinal era rica, a filha alimentava-a, lavava-a, vestia-a, beijava-lhe o cocuruto e chorava por ela quando a Lua enfeitava o céu. Era uma mãe que ainda amava muito a filha e arranjou um modo de lho dizer. O amor, mesmo em silêncio, encontra uma forma de falar. Através de mim. Eu era poesia viva.

Hoje, o meu filho brinca no quarto onde me encontro com a minha mãe. Acabei de cuidar dela, de lhe ajeitar os cabelos brancos e de lhe pedir que entre nos sonhos do Frederico, para lhe dizer o quanto nos ama. Tal como a mãe dela fez comigo quando eu ainda era uma criança.

A poesia nunca morrerá.

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Claudia Passarinho

Texto Vencedor

Crime, dizem

Acordado à bofetada, mãos atrás das costas, amarradas à força, sob gritos infernais, caminho. Ora caio ora me ergo, pontapé no traseiro ou na perna, à mercê da vontade dos três polícias, alinhados na minha crucificação. Um Cristo sem perdão, sem ter consciência das acusações. Espanquei, roubei, matei? Onde? Quem?

As perguntas são respondidas com obscenidades escarradas ao meu ouvido. Violência na galeria de epítetos perversos. Penso, examino o dia: fui buscar o pão, paguei-o, recebi troco. Ora então, senhores, como posso ter entrado em casa da velhota do terceiro esquerdo e atacá-la? Talvez tenha praticado tais atos ignominiosos e deva pagar por eles. Olhem, se assim aconteceu, estou grato por estar preso. Nem mereço comer pão duro. Deveria jazer numa pocilga. Ah, já estou no poço, de corda ao pescoço, a mente parasita da realidade. 

Preciso de me concentrar. Fui buscar o pão, comi-o ou alguém o devorou? Será que a padeira mo entregou? Sim, num saco de papel. Já não há sacos de plástico, fazem mal ao ambiente. Se concordo com a proteção do ambiente, se separo os lixos, se saúdo as crianças, adultos e seniores, como posso ter desgraçado a tal senhora idosa? Ai, a minha cabeça é um fogo de indecisão, uma serpente venenosa que ziguezagueia, se desprende e me deixa sem respostas claras e assertivas. Confesso ou não? Se confessar, acabamos com isto e apodreço na cadeia. Merecido! Caso insista em provar que fui ao pão, que paguei, recebi troco, fui para casa com o saco de papel na mão, aguento mais uns empurrões, uma rodada de «assassino» e os tais palavrões que teimam entranhar-se em mim.

Culpado? Tanto faz. Aceito o que lhes aprouver, o que o destino quiser com um sorriso, o primeiro passo que une duas ou mais pessoas.

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M. Leonilda Pereira

2.º Texto Vencedor

Eu me confesso

Um turbilhão de pensamentos martela-me o cérebro. Enche-me o peito de raiva e culpa pela ato que pratiquei. Não consigo sossegar. Deslizo para o dia em que cometi o crime. Mas será que cometi mesmo?

Quer o tenha feito ou não, pesa-me um remorso que me dói nas têmporas. Tudo se coaduna para que tenha acontecido. A oportunidade existira.

Porque o fizera ou porque retrocedera? Por medo, covardia? Enredado numa teia de emoções, o ato esta envolto numa nebulosa que não me deixa ver a realidade. E a voz? “Para!” ─ dizia num sussurro. Não sei se lhe obedeci. A verdade é que tinha todos os motivos e condições para concretizar o ato.

Lembro-me de levar a mão ao bolso em que estava a arma e pensar “se ele fizer um movimento que seja, disparo”. Vi-o avançar e a partir daí nada mais. E agora estou a braços com um ressentimento de o ter feito ou não. Noticiaram um morto e eu estive lá no local. O que será de mim se o tiver cometido? Serei mais feliz ou miserável? E se o fiz, devo a mim próprio um arrependimento? Não consigo perceber porque é que aquele segurança do bar não me deixava entrar.

Falei-lhe ao coração, não se comoveu. Então pensei em tirá-lo do caminho.

Foi quando ele avançou e depois não recordo mais nada. O meu amigo João trouxe-me para casa. Testemunha do que aconteceu, sabe a verdade, mas eu não quero saber.

Este é o castigo para um crime que provavelmente nem cometi.

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Maria Gaio

Texto Vencedor

2642

Sigo pelo corredor. O meu polegar vai abrindo diferentes portas até chegar ao laboratório. O nome oficial é ClínicaCib. É aqui que te estás a tratar. Desde 2638, tudo se concentrou neste complexo. As novas leis retiraram-te os direitos, os ciborgues passaram a ser coisas, equiparados aos robôs. Catalogados apenas como máquinas, inferiores a nós, humanos.

Verifico sempre as listas até aparecer a tua identificação. Sou a médica escalada, por isso não existem obstáculos.

Atravesso o espaço das investigações e sigo para a sala de tratamentos. Aguardas-me na marquesa. Nu e ligado. Faço os exames prévios e levo-te para o tanque, utilizado para estudos complementares, que fica numa sala sem câmaras. A sós, a escassez destes momentos impõe-nos uma cadência acelerada. A minha bata é rapidamente descartada, debaixo dela o teu pedido.

Sorris e beijas-me. Dois corpos, estimados no seu enrolar frenético, dizem o que as palavras não podem suportar. Fico com os sentidos subjugados. A tua língua domina-me, sincrónica com as mãos que desapertam o meu biquíni. Enquanto me beliscas os mamilos, os teus lábios percorrem-me o pescoço até sentir-te os dentes na junção com a clavícula. Sinto-me latejar na vulva. Baixas a cabeça e tomas-me um seio na boca. Arqueio. Deslizo as unhas nas tuas laterais e mordiscas-me o mamilo.

Desvias-me as cuecas com a mão direita e afastas-me a coxa, abrindo-me mais. Os meus dedos sobem pelas tuas costas e agarro-me aos teus ombros, ao mesmo tempo que me penetras com urgência, fazendo-me gemer. Os movimentos são fluidos e rápidos, a intensidade crescente. Movo a pélvis ao teu encontro, também esfomeada. Perdemo-nos nesta dança, o ritmo dado pelo som da nossa pele e dos gritos de prazer, os teus dedos apertam-me o clitóris, a nossa explosão diluída pela água.

Trimm. É o alarme.

Acabou o nosso tempo.

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Carla Carmona

Texto Vencedor

Do cautela ao pouquinho

O meu avô era um homem que dizia «cautela» sempre que queria proteger alguém. «Cautela que cais», «cautela que está quente», «cautela que te cortas». Juntou tantos anos quantos aqueles que a cautela lhe permitiu. Verdade! Sem cautela não arrecadaria tanto tempo nos ossos. Sabia que o tempo apodrece, mas sem a dita cautela empobrece.

Era jardineiro e dotado para harmonizar o mundo com as tonalidades das flores que plantava. Margaridas, gerberas, estrelícias. Por vezes, finalizava com uns quantos girassóis.

Algumas pessoas são excelentes escritores, carpinteiros, até mesmo calceteiros. O meu avô era o poeta das flores, sabia identificar o lugar perfeito para qualquer uma; como um poeta o faz com as palavras.

Um dia, salvou um caracol do meio da estrada de terra batida. Eu, que caminhava com as minhas sandálias de tiras e os pés encardidos da animação, por pouco não o pisei. O meu avô levou-o para lá dos caniços. Perguntei-lhe o porquê de tal gesto. Assustou-me com uma conversa qualquer de que a vida não é eterna e que quando fazemos contas resta-nos pouquinho tempo para as boas ações.

Os anos passaram.

A «cautela» foi substituída pelo «pouquinho». «Pouquinho sal na comida», «um pouquinho cansado», «um pouquinho mais devagar, o avô já não corre como tu!». Entristeci, porque a «cautela» mostrava a preocupação dele por mim e o «pouquinho» a minha preocupação por ele.

No verão de 1991, a jarra na cómoda não vertia tulipas. O meu avô deixou de zelar pelos jardins. Lá fora, o ar permanecia perfumado pelas flores, pela terra, mas sem o salgado da pele dele. Numa tarde, o meu avô levou a cautela e o pouquinho deitados com ele numa maca. Enquanto esfregava os olhos contra a humidade, ouvi a minha mãe dizer-lhe: «Ó pai, aguente mais um pouquinho». Foi quando soube que a cautela ia morrer.

O meu avô era um homem que dizia cautela sempre que queria proteger alguém. Cautela que cais, cautela que está quente, cautela que te cortas. Juntou tantos anos quantos aqueles que a cautela lhe permitiu. Verdade! Sem cautela não arrecadaria tanto tempo nos ossos. Sabia que o tempo apodrece, mas sem a dita cautela empobrece.

Era jardineiro e dotado para as tonalidades das flores que plantava. Margaridas, gerberas, estrelícias. Havia vezes que finalizava com uns quantos girassóis.

Há pessoas que são excelentes escritores, carpinteiros, até mesmo calceteiros. O meu avô era o poeta das flores, sabia identificar o lugar perfeito para qualquer uma; como um poeta faz com as palavras.

Um dia salvou um caracol do meio da estrada de terra batida. Eu, que caminhava com as minhas sandálias de tiras e os pés encardidos da animação, por pouco não o pisei. O meu avô levou-o para lá dos caniços. Perguntei-lhe o porquê de tal gesto. Assustou-me com uma conversa qualquer de que a vida não é eterna e quando fazemos contas resta-nos pouquinho tempo para termos boas ações.

Os anos passaram.

O cautela foi substituído pelo pouquinho. Pouquinho sal na comida, um pouquinho cansado, um pouquinho mais devagar, o avô já não corre como tu! Entristeci, porque o cautela mostrava a preocupação dele por mim e o pouquinho a minha preocupação por ele.

No verão de 1981, as jarras na cómoda vertiam tulipas. O meu avô, deixou de zelar pelos jardins. Lá fora, o ar perfumado das flores, da terra e do salgado da pele dele permanecia. Numa tarde, o meu avô levou o cautela e o pouquinho deitados com ele numa maca. Enquanto esfregava os olhos contra a humidade, ouvi a minha mãe dizer-lhe «Oh pai, aguente mais um pouquinho». Foi quando soube que o Cautela ia morrer.

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Claudia Passarinho

Texto Vencedor

O bom fascista preocupa-se com a literacia do povo

O BOM FASCISTA É… Tendo como mote o livro «Manual do Bom Fascita» de Rui Zink, o desafio foi partindo da observação da realidade atual criar um texto satírico humorístico dentro desta temática tão séria.

Ali mesmo, na taberna, templo do conhecimento popular. Escolhe o homem mais franzino, que costuma fazer-se acompanhar pela mulher.

Chama-o à parte.

Informa-o de que o vinho que lhes serviram é traçado. Diz, também, que é melhor que a mulher deixe de o acompanhar, pois é seu dever protegê-la destas incúrias. Ela que se entretenha em casa, que fale pouco e que leia ainda menos. As mulheres são péssimas influências e os livros são ainda piores do que as mulheres.

Um segundo franzino é chamado para comprovar a má qualidade do vinho que ambos bebem. Aos matulões é que servem vinho de garrafa, explica-lhes. Eles que acreditem na sua palavra, homem engravatado jamais mentiria, garante-lhes.

A mulher do primeiro franzino aproxima-se. O bom fascista, sorridente, incentiva-o a aplicar o que aprendeu: sabes o que tens a fazer.

O franzino manda-a para casa. Ela, empertigada, pergunta: para casa fazer o quê? O pobrezinho detém-se o inquire o bom fascista com o olhar. Este responde por ele: vá apanhar a roupa. Ela, surpreendida, arregala os olhos. A mulher do segundo franzino intervém, em defesa da primeira.

Com regozijo, o bom fascista afaga os ombros dos dois e sussurra-lhes: péssimas influências umas para as outras… e já sabem… livros, então, é para acabar.

Observa-os, enquanto acaba o seu copo de aguardente velha. Uma satisfação vê-los seguir e, cada um em seu canto, transmitir a sabedoria aos restantes franzinos.

Amanhã voltará. Irá instruí-los sobre os lambões dos deficientes que recebem subsídios para não fazer nada à conta dos impostos dos que trabalham.

Levanta-se e sai. Leva as pontas dos dedos à frente do nariz e faz um esgar de náusea. Precisa de um banho de água de malvas. Este cheiro a proletariado perturba-lhe o descanso.

Laura Santos

Texto Vencedor

O bom fascista deve ser daltónico

O BOM FASCISTA É… Tendo como mote o livro «Manual do Bom Fascita» de Rui Zink, o desafio foi partindo da observação da realidade atual criar um texto satírico humorístico dentro desta temática tão séria.

Não é que seja racista, mas convém que as cores que enxerga sejam todas, menos o vermelho.

No entanto, fica feliz quando o verde se transforma em vermelho, pois tem ali à mão um adversário. E como aquela cor predomina à sua volta, vê adversários em todo o lado, o que lhe dá imenso que fazer.

No entanto, depende muito do foco e o seu é erradicar o vermelho, o que vem muito a calhar o daltonismo. Vê o mundo cinza, mas depende da pigmentação do objetivo focado.

O preto serve-lhe na roupa mas não na pele. Não é bem-visto, faz-lhe lembrar povos incultos e selvagens sem direitos alguns. Como é possível pensarem que é racista, se ele próprio é judeu, mas não quer que se saiba!

O culto religioso tem cores brancas, púrpuras e douradas que ele preza, mas tem de estar em sintonia com o seu lema: “ou está comigo, ou está contra mim” e por extensão contra a pátria.

A sua cor preferida é o azul e branco, da sua bandeira. Sempre presente, em casa e no trabalho. Quanto à família ela é monocromática, só a sua cor deve sobressair.


Deus, pátria, família é o slogan a seguir.

Maria Gaio

Texto Vencedor

O bom fascista não desgosta de poetas

O BOM FASCISTA É… Tendo como mote o livro «Manual do Bom Fascita» de Rui Zink, o desafio foi partindo da observação da realidade atual criar um texto satírico humorístico dentro desta temática tão séria.

Aprova os poetas, desde que saibam o seu lugar.

Como em tudo na vida, à vontade não é à vontadinha.

Um poeta não pode ser qualquer um. Íamos, agora, ter comuns gatos-pingados a escrever poesia, não? Há que impor a ordem também nas letras.

A poesia é uma coisa séria. Coisa para gente grande. Então não tivemos poetas importantes, no “tempo da outra senhora”, como diz esta canalha? Olhem o Camões. Escreveu uns versos tão porreiros sobre a pátria e sem se rebelar contra o regime do Senhor Professor. A ver se não vendeu uma data de livrinhos. Ninguém percebe o que lá está escrito, mas foi o regime que o ajudou e até lhe deu uma pensãozita.

Portanto, o bom fascista até gosta de poetas.

Se não forem mulheres, armadas ao pingarelho, a falarem de sexo, que isto, agora, é ver umas serigaitas por aí a quererem escrever coisas eróticas, como elas dizem. Lambisgoias a porem-se a jeito, a pedi-las. Antigamente, estavam matriculadas, agora escrevem poesia.

Também não podem ser esses larilas, que, agora, se chamam homos e trans e binários e têm p’ra lá uma sigla. Um L qualquer coisa. Uma cambada de maricas a quererem aparecer e ter os mesmos direitos da gente normal.

Por cá, poetas, só portugueses, que também andam aí uns brasileiros, uns árabes e uns pretos que deviam ir p’ra terra deles. Os pretos que joguem futebol, que chega muito bem e os brasileiros que façam telenovelas. Dos árabes é fugir com quantos pés se tenha.

O bom fascista gosta do bom poeta. Aquele que conhece o seu lugar, que glorifica a Pátria, Deus e a Família, que o respeitinho é muito lindo e isto da poesia é só para gente grande.

Ana Paula Campos

Texto Vencedor
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