
Herança de papel e tinta
A chuva miudinha tamborilava contra a janela do pequeno estúdio. O vento sussurrava entre as frestas da porta, emitindo um leve gemido fantasmagórico. O ar tinha um cheiro familiar, uma mistura de papel envelhecido, tinta seca e um leve resquício do perfume do pai, impregnado nos móveis e na poltrona onde ele sempre se sentara.
Clara passou a mão sobre a mesa de desenho do pai, agora coberta de pó e de silêncio. Fora ali que ele passara tantas noites, dobrado sobre as pranchas, criando mundos de tinta e papel. E agora, restava um vazio.
Foi então que viu o livro. Uma pilha de folhas, desenhos a lápis, alguns traços definitivos a tinta, mas muitos balões vazios, sem palavras.
Uma história suspensa.
Com mãos hesitantes, folheou as páginas. A forma como o pai, esboçava emoções nos rostos e o jeito cuidadoso de sombrear. Algo a intrigava, as personagens pareciam-lhe familiares.
Na primeira página, um homem e uma menina de mãos dadas atravessavam uma rua de paralelepípedos. Ela estudou melhor os pormenores e sentiu um nó na garganta. A menina era ela.

O homem… era o pai.
Devorou as páginas seguintes. Lá estavam fragmentos de memórias transformados em janelas, uma ida ao parque, o som das folhas secas, uma noite de tempestade em que ele a acalmara com histórias sussurradas ao ouvido, os serões em que inventavam histórias antes de adormecer. À medida que avançava, os desenhos tornavam-se esboços, como se o tempo não tivesse sido suficiente para os terminar.
E então, viu a última página. Inacabada.
O pai desenhara uma cena de despedida. A personagem que era ele, parecia segurar algo nas mãos, oferecendo-o à filha. Mas os contornos eram incertos e o que quer que fosse, permanecia um mistério. Clara sentiu-se afundar na cadeira. O que tentaria ele dizer-lhe? O que ficara por completar?
O peso da saudade apertou-lhe o peito. Havia também um amargo travo de culpa, de uma ausência que agora parecia insuportável. Há quanto tempo não via aqueles desenhos? Há quanto tempo se afastara daquele mundo, que o pai tanto tentara partilhar com ela?
Lembrou-se das vezes em que recusara ver as novas páginas que ele lhe mostrava, das ocasiões em que respondera apressadamente, alegando estar ocupada. O tempo sempre pareceu infinito… até deixar de o ser. Agora, as oportunidades estavam presas e restava-lhe um livro incompleto.
Pegou num lápis e passou o dedo sobre o papel, como se pudesse tocar na ausência. O que significava realmente continuar aquela história? Era só uma questão de terminar os desenhos ou havia algo mais profundo a ser compreendido?
Fechou os olhos por um momento e deixou que as memórias se espalhassem pela mente. Lembrou-se das noites em que o pai lhe dizia que os heróis nunca desaparecem, apenas mudam de forma.
E então, recordou uma história em particular. Era uma noite de verão, Clara tinha oito anos e o pai, sentado à beira da cama, desenhava à medida que inventava uma história. Era sobre uma rapariga que encontrava um caderno mágico. Tudo o que escrevesse nele, tornava-se realidade. Contudo havia uma regra, só podia escrever verdades. Se mentisse, a tinta desaparecia. Clara lembrava-se de ter ficado fascinada. «”E se eu escrever que sou uma princesa guerreira? »”, perguntara. O pai sorrira e respondera: «”Se no teu coração acreditares que és, então será verdade.»”
Agora, de regresso ao presente, Clara sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. A metáfora nunca lhe parecera tão clara. O pai deixara-lhe uma história inacabada, cabia-lhe a ela continuar. Isso significava mais do que simplesmente completar as páginas. Significava escrever a verdade.
E qual era a sua verdade?
Que sempre admirara o pai, mas nunca lho dissera com a intensidade merecida. Que sempre quisera fazer parte daquele mundo de desenhos, mas convencera-se de que não tinha talento suficiente. Inspirou fundo e, com mãos trémulas, pegou na caneta. No balão vazio, escreveu as palavras que sabia que ele queria dizer-lhe:
«”A herança mais preciosa não se mede em ouro, mede-se nas histórias que partilhamos.»”
Ao terminar, Clara sentiu um peso a desprender-se do peito. Olhou para o livro e, pela primeira vez desde que entrara no estúdio, sentiu-se acompanhada. O pai estava ali, nas linhas, nas sombras. E de repente, soube o que fazer.
Pegou num lápis e começou a desenhar.
Sem pressa, traçou os contornos da última página, continuando o que pai iniciara. O objecto que a figura paterna lhe estendia tomou forma aos poucos. Dentro, Clara desenhou uma página em branco. E então, no último balão de fala, escreveu uma frase simples, mas cheia de significado:
«”Agora, é a tua vez de contar a história.»”
Ao fechar o livro, Clara percebeu que, embora o pai tivesse partido, a sua voz permaneceria viva através das histórias que deixara e das que ela ainda escreveria.
Com um suspiro profundo, pegou num velho estojo de lápis de cor, ainda com o cheiro da infância. Abriu uma nova página em branco e começou a desenhar. Primeiro um traço tímido, depois outro, até as linhas começarem a formar imagens e memórias reinventadas.
Horas se passaram sem que Clara reparasse. E ao terminar a sua primeira janela, sorriu. O ciclo não se fechava. Continuava. A história do pai agora também era sua.
Dias depois, Clara decidiu levar o livro a uma editora, um pequeno espaço que o pai sempre mencionara, mas nunca tivera oportunidade de visitar. O editor de olhar atento e sorriso caloroso, folheou as páginas com genuína admiração.
«”Há aqui algo de especial»”, disse ele. «”Algo que merece ser partilhado.»”
Meses depois, Clara segurava entre as mãos um livro impresso, com o nome do pai e o seu na capa. Uma homenagem através da arte.

No dia do lançamento, sentada numa mesa rodeada de leitores, Clara autografou os primeiros exemplares. Quando levantou os olhos, teve a sensação de ver, por um breve instante, o reflexo do pai na vitrina da livraria, sorrindo para ela, orgulhoso. E, com o coração leve,
Clara sorriu.

Lara Fernandes
- março 2025