historias à solta - textos do mês

Irmãs

Duas irmãs. Juntas e afastadas. Sem uma terna cumplicidade. A viverem uma paz com violência latente. Em qualquer momento, por qualquer trivial circunstância, pode saltar um julgamento, um grito, um murro numa porta, um objeto arremessado ao nada. Fazem por se tolerar. O que carcomeu esta relação? Os desacertos de uma e a racionalização de outra? A permanente necessidade de ajuda de uma e o já cansaço em ajudar de outra? Como ambas assentiram nesta relação quebradiça e desistiram de serem verdadeiramente irmãs?

Ana Candeias

Ana Candeias

Texto Vencedor

Cumplicidade

Vidas. Caminhos. Encontros e desencontros. Procuro-me, procuro-te. Sinto o vazio do teu abraço. Existo, sim. Mas nós dois podemos ser um. Um em cumplicidade. Do meu peito ecoam sons que só tu conheces. Escutas ou não? Recordas-te?

 

Nem te via porque o mundo te tapava. Ora eu voava, ora tu. Ora eu ficava, ora tu. O tempo jamais parou. Nem para mim, nem para ti e nem, mesmo, para ninguém. Morria e renascia. E não te encontrava. E tu? Renascias e morrias sem me esperares.

 

Tempo! Tempo que não para. Vida que é eterna.

 

Na minha loucura, tropecei. Talvez tenha tropeçado em ti e passei sempre. Talvez não. Estarias em todo o lado? O que nos faltou? Onde a pupila dos teus olhos? Só olhar é pouco. Espreitar a alma. Mergulhar.

 

Fui cobra que rastejou em penas. Fui caranguejo que a correr para trás fugia. E tu? Galopaste, eu sei. Não sei.

 

Foste rio em que eu me banhei. Foste vento por onde voei. Alma penada. Caída e levantada.

 

Quem perdia quem?

 

Sinto-me inquieta. Procuro-te. Sei que me procuras também. Ouço o teu eco. O som dos teus passos. Dizem que há almas gémeas. Se as há, andam descompassadamente desencontradas. Foi ao virar da esquina. O teu cheiro. 

O teu toque. Nem o corpo novo que trazias deixava-me confusa. Eras tu. De certeza. Toca-me. Repara que ao teu peso eu serei sempre o contrapeso. Sou eu. És tu. A minha metade. A tua metade.

Manuela Vieira

Manuela Vieira

Texto Vencedor

INTRINCADA INTRIGA

Da cabana o manto branco do horizonte feria os olhos. Uma paisagem despida de vida. Rashad coloca o binóculo no olho direito como um pirata à espera de larapiar um náufrago. A guerra instalara-se lá fora. Percorria os países com labaredas de desesperança. Ele, um espião ao serviço dos Estados Unidos, sabia o que fazer. Faria uma corrida contra o gelo. E foi na Rússia que encontrara a efígie da paz. Debaixo do gelo, jazia à espera de cumprir o seu destino, Emerita, a única robot de inteligência artificial capaz de eliminar o imperador Brinaldo. Ele seria o cupido.
Cláudia Passarinho

Cláudia Passarinho

Texto Vencedor

Travessura

Abominava a idiota tradição importada dos americanos. Por ele, receberia qualquer criança
que lhe batesse à porta apontando-lhe os canos da caçadeira. À esposa, no entanto, brilhavam
os olhos sempre que ouvia a irritante frase.

«Doçura ou travessura.»

Os pequenos fantasmas, vampiros e lobisomens serviam-se das guloseimas que ela acumulara
em tal quantidade que daria para tornar diabéticos todos os habitantes da aldeia.

Quando, após mais um toque da campainha, ele a ouviu gritar, julgou ser apenas mais uma
tentativa de animar os monstros imberbes. Mas ela não parava. Gritava, berrava, uivava.
Histérica como uma hiena. Ele correu a acudi-la, contrariado.

À porta, de mão estendida, estava uma zombie. Cabelos desgrenhados, olhos vermelhos,
carnes podres. Ele ficou impressionado com a caracterização, até a reconhecer.

— Luísa. — Murmurou.

E a esposa gritava e chorava e repetia, Luísa, Luísa, Luísa, minha Luísa.

“Como te desenterraste? Como voltaste a pôr a cabeça no lugar? Como percorreste todos
estes quilómetros? Como estás aí, após tantos anos?” Perguntava o homem para si próprio,
mas apenas lhe saía um som.

— Luísa.

A criança arreganhou os lábios e falou:

— Olá… Pai.

Não tinha língua.

Nuno Gonçalves

Nuno Gonçalves

Texto Vencedor

O último sonho

Eram precisamente 2 horas e 30 minutos, numa madrugada quente de verão, quando Sofia se preparava para atravessar a rua que a levaria a casa.  Na montra de uma relojoaria, um Rolex chamara a sua atenção. Fixou-o por momentos, antes de dar mais uns passos em direção à passadeira de peões. O silêncio da hora contrastava com a luminosidade quase cortante de algumas montras e com a sombra pouco convidativa projetada pelos candeeiros de rua.

O seu coração, oceano de um amor que sentia cada vez maior, sonhou: “O João iria adorar aquele relógio. Foi um sinal. O Rui não vai saber. Detesta-o, está sempre a dizer que sou louca, que o conheci há pouco tempo, que deixei o pai por causa dele e já não vejo outra coisa. Lá isso é verdade. Este meu João é especial. Sinto-me renascida. Quando fomos hoje ao banco pôr a conta em nome dele, percebi que me entreguei por inteiro. E fez questão de estar comigo até partir de viagem. Que mais provas quero? Amo-o como nunca amei ninguém.  Quando ele voltar, vou fazer–lhe uma surpresa”.

Envolvida nestes pensamentos, Sofia preparou-se para atravessar. Nesse momento, uma carrinha com vidros escuros fez uma travagem brusca à sua frente. Dela saíram quatro homens com a cara coberta. Empurraram-na violentamente para a parte traseira do veículo. Tentou gritar “João, João”, na esperança de que o seu amor a salvasse, longe de pensar que, afinal, ele estava bem perto, mas prestes a pôr-lhe fim à vida.

Teresa Dangerfield

Teresa Dangerfield

Texto Vencedor
6 meninas

SEIS MENINAS

Elas eram seis meninas

sentadinhas numa concha

ali mesmo junto ao mar.

Tinham cabelos de bruma

anéis de estrelas nos dedos

e sonhos de navegar.

Guardavam a sua pérola

não fosse alguém a roubar.

 

Brincavam de faz de conta

sem se aperceber

que o que elas brincavam

era a vida a acontecer.

E enquanto acontecia,

nenhuma delas esquecia

de guardar aquela pérola,

não fosse alguém a roubar.

 

Vieram anos, distâncias,

saudades, partidas,

caminhos quebrados,

perdas e retornos

mas na conchinha da praia,

redonda e nacarada de luar,

estava a pérola guardada,

ninguém a podia roubar.

 

E lá estão as seis meninas,

na conchinha junto ao mar.

Têm cabelos de prata

dedais de búzios nos dedos

e ternura no olhar.

Bordam memórias na espuma

ouvem segredos do mar

e aquela pérola guardada,

tão mimosa, tão cuidada,

ninguém a poderá roubar.

 

Carmo Marques

Setembro 2022

Às minhas amigas de sempre e à pérola que é a nossa amizade

Carmo Marques
Carmo Marques
Texto Vencedor
O tronco da vida

O tronco da vida

O tronco da velha árvore já não vive. Os ramos perderam as folhas. Os pássaros tímidos não podem mais esconder as suas coreografias amorosas. Os ovos azuis pintalgados de negro não têm onde eclodir para novas vidas, sôfregas e frágeis, de bicos escancarados por alimento. Uma rajada de vento forte pô-la à prova. Desistiu de fazer-lhe frente e jaz agora junto ao espelho quieto e cinzento do lago.

O melro preto voa e salta descontraído. Olha espantado para os vultos humanos e estranhos que lhe invadiram de repente o relvado aparado de fresco. Parecem perdidos. Preenchem papéis brancos com canetas que riscam de dourado. Sente fome. Com as suas garras, arranca uma casca ressequida do tronco abandonado. Surge uma colónia de larvas e formigas pretas grandes e gordas que correm em rumos escangalhados, a oportunidade única da refeição merecida. Aproveita-a com sofreguidão. As forças regressam e já pode cumprir o desígnio de cantar até que o sol se esconda por trás dos plátanos ao fundo da herdade. A missão que lhe fora destinada pode, finalmente, ser cumprida.


José Mendes
José Mendes
Texto Vencedor
Adoro a morte

Adoro a morte

Adoro a morte. É tão…fácil. E nós, humanos assustados, que tanto a tememos… chega a ser ridícula a facilidade com que corremos em direção a ela. Patéticos. Discordas? Bem, hoje o sono está a tardar e não tenho nada melhor para fazer. Será mais simples mostrar-te. Acompanha-me, e vais perceber o meu ponto de vista.

Descemos à rua. O Chiado, a esta hora, está deserto, mas a diversão não é por cá de qualquer forma. Deixa-me só fechar o casaco, e é melhor fazeres o mesmo que é sempre fresco de madrugada. Subimos até à Praça Luís de Camões e aqui conseguimos perceber a vibração da noite. Senta-te comigo, aos pés da estátua. Nah, os que por aqui estão são dispensáveis. É um espaço demasiado amplo, de qualquer forma. Ficamos muito expostos. Ouve, fecha os olhos e percebe de onde vem o som. Sim? Identificas? É para lá que vamos, onde a decadência dura. Por esta altura, nenhum dos resistente estará sóbrio. Espera, antes de entrarmos no bairro cobre-te com o capuz. Isso, bem puxado sobre a cara, exatamente. Nas sombras a nossa face é um vazio, que imagem linda…

Caminhar devagar, sempre. O ritmo da passada, quando é decidido e lento, dá-nos poder, o poder do controle sobre o rumo que a caçada terá. Não, nada de pressas. Olha o grupo, daqui de longe, estuda-os. Bastam alguns minutos para identificares o mais fraco, o que facilmente se desgarra do rebanho. Repara… aquele. Vês o magrito encostado à parede? Sim, o que está a vomitar, esse mesmo. Nada inteligente. Daquela esquina conseguimos que deixe de ver os colegas sem que se mova, basta aparecer pela rua de baixo. Silenciosos, não deixemos que nos veja (para isso, o lixo empilhado por estas ruas é extremamente útil) e, quando voltar a erguer a cabeça, estamos a dois passos. Bam! Num segundo está a vomitar, no seguinte tem um vulto encapuzado à distância de um braço. O ar de pânico! Delicioso. Repara, vai voltar as costas e correr em frente, é um clássico. Raramente estão suficientemente lúcidos para encontrarem o caminho de volta ao bar, que por esta hora é o único aberto. Deixamo-lo correr e observamos. Espera… uma caçada vive da paciência. Vejamos como se comporta… lá está, virou. Curiosamente, voltam quase sempre à direita. Percebeste em que rua virou? Isso, agora é altura de correr. Sempre por uma paralela, ganhando velocidade, conseguimos surgir-lhe à frente com um quarteirão de avanço. Ah! O olhar dele. Pânico! Excelente trabalho. Conseguimos, o gajo já está borrado de medo. Agora é só continuar atrás dele. Seguros e constantes, postura ereta. Olha pra ele, já mal consegue correr a direito. Medo e álcool são uma infusão poderosa. Tão fácil…

Resta encaminhar este cadáver ambulante para o seu destino. Repara, consegues guiá-lo usando a tua posição na rua: se caminhares ao centro, ele irá em frente, se estiveres próximo da margem direita, ele vira à esquerda, e vice-versa. Simples, vês? Para onde? Ah, para onde… hoje tenho em mente uma coisa especial, digna do Louvre. Príncipe Real, guiamos o gajo para lá. Sim, para os jardins, o São Pedro de Alcântara. É isso mesmo, estás a imaginar o plano?

Os jardins são nossos amigos. Deve ser a proximidade da natureza que lhes dá qualquer coisa de primitivo e selvagem durante as horas mais escuras. Como treme, o moço. Continua a caminhar certinho, basta isso. Casaco fechado, capuz bem puxado, mãos nos bolsos e passada segura. Implacável. O gajo treme e agarra-se ao gradeamento como a uma tábua de salvação. Perfeito. É só continuarmos a caminhar. Lentos, felinos. Já sobe a grade, vês? Isso mesmo, nós não paramos.

Pelo barulho, não caiu em cima de um carro. Vá, não queiras perder a melhor parte! Baixamos o capuz, que não queremos assustar ninguém, e descemos a rua que contorna o jardim com calma. Pelo caminho, avisamos o 112: «Estou? Olhe, não sei o que se passa, mas gritaram! Não é habitual, não durante a semana. Acho que alguém se magoou, venham, por favor! Onde? No Jardim de São Pedro de Alcântara, moro mesmo em frente. O meu nome? Estou? Não ouço. Sim?». Feito. Bem, se tivéssemos deixado um alvo, o gajo não teria conseguido ser mais certeiro. Olha que maravilha! Conseguiu ficar empalado no gradeamento. Belo salto. E agora? Agora escolhemos de onde queremos ver o espetáculo.

O som das sirenes acalma-me. Laivos de azul e amarelo iluminam o corpo que se dobra, num ângulo impossível, sobre a grade. O brilho das lanternas acentua o encarnado do sangue que desenhou uma poça disforme no passeio e escorre pelo muro. Um quadro. Belíssimo.

A morte. A derradeira obra de arte.

Diana Almeida
Diana Almeida
Texto Vencedor

A menina do farol

Tem nas pernas alfinetes

É de linha o caracol

Preenchida de farrapos

Roupa feita de lençol

Sabe que é feita de trapos

A menina do Farol.

Diana Almeida
Diana Almeida
Texto Vencedor
casa de partida

Casa de Partida

«Falta-te o fôlego quando te assomas. No reflexo gelado da vitrina dos iogurtes, vislumbras a imagem, desfocada, daquela que outrora amaste.

Caminhas descompassado enquanto a bela morena enfia a cabeça no balcão do talho adivinhando a tua respiração ofegante. Continuas assombrado. Quem disse que algum dia ousarias voltar ao passado?

Tu não és o tipo de homem que frequenta o supermercado a estas horas da manhã. O teu cérebro navega desgovernado, tenta entender o que faz ela a trezentos quilómetros da casa de partida. Ela topa-te. Continua, impávida, a encher o pequeno cesto de rede azul. Será que te reconheceu?

Apressas-te a partir. Falta-te a coragem, como há seis meses, de reconhecer o teu fracasso. Em desalinho, nem dás conta da pilha de latas que derrubas à passagem, vislumbrando a linha de caixas.

O alívio consome-te quando a porta se abre. Terá sido uma miragem? Talvez o medo te esteja a toldar os sentidos e Sónia povoe tudo o que por ti graceja.

O 𝐶ℎ𝑎𝑛𝑒𝑙 𝑅𝑜𝑢𝑔𝑒 nunca engana e o para-brisas do teu carro é a prova viva do que, em letras berrantes, te traz a intempérie: «Algures no passado podias ter minorado a perda, mas talvez a perda não tenha sido assim tão grande… a minha.»

Ana F. Pinheiro
Ana F. Pinheiro
Texto Vencedor
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