— Desculpe, mas não o conheço. Como é que conseguiu a minha morada? — perguntou Luzia.
Ricardo ficou parado no patamar. Olhava para ela com uma intensidade que a fez recuar meio passo.
— Olhe, se é de alguma associação de dadores, eu já contribuo mensalmente. Está no site — disse ela.
Ele abanou a cabeça. Levou a mão ao bolso do casaco e tirou uma fotografia dobrada.
— Não percebo. O que é que quer de mim? — insistiu Luzia, a voz já trémula.
Ricardo desdobrou a fotografia devagar. Era uma mulher morena, de sorriso largo, numa praia paradisíaca. Estendeu-lhe a imagem.
— Eu não a conheço. Nunca vi esta pessoa na minha vida — disse Luzia.
Ele apontou para o peito dela. O dedo não chegou a tocar-lhe, mas ficou ali suspenso no ar, a tremer ligeiramente.
— Por favor, vá-se embora ou chamo a polícia — ameaçou ela, a mão já no telemóvel.
Ricardo recuou um passo. Guardou a fotografia. Mas antes de se virar, pousou uma mão sobre o próprio peito, exatamente onde ela tinha a cicatriz.
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— Faz hoje três anos. Três anos que me deram esta vida nova. Devia estar feliz, não é?
— A Beatriz adorava correr de manhã. Dizia que o coração batia mais forte quando via o sol a despontar.
— Acordo todas as noites. Ponho a mão aqui e sinto-o a bater. Às vezes, bate demasiado depressa e fico em pânico.
— Ela tinha-me dito: «Se me acontecer alguma coisa, não quero que mexam em mim. Não quero que me tirem nenhum órgão». Mas nunca registou a sua oposição.
— Os médicos dizem que é normal. Ansiedade pós-operatória, chamam eles. Como se isto fosse normal.
— Quando me ligaram do hospital, eu estava em choque. Nem sequer me lembrei do que ela tinha dito. Só muito depois.
— Tento fazer jus a isto. Corro, como bem, deixei de fumar, agradeço a Deus. Tenho de merecer esta dádiva que recebi e que já não esperava, percebes?
— Descobri quem eras. Não foi difícil. Os hospitais têm falhas na proteção de dados. As pessoas falam demasiado, especialmente quando se referem a casos marcantes.
— Há um peso. Todos os dias carrego um peso de ter algo que era de outra pessoa. Algo tão precioso.
— Vim senti-lo a bater. Só queria ouvi-lo mais uma vez. É pedir muito?
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— Como é que se atreve? Andar a pedir informações pessoais minha? Aparecer aqui na minha casa? Isto é perseguição.
— Eu só queria perceber! Precisava de saber quem tinha o coração dela!
— O coração não é dela! É meu! Foi-me dado legalmente! Ela era dadora presumida, como todos nós!
— Mas ela não queria! Tinha-me dito que não queria! E eu não fiz nada, não a defendi! Não defendi a sua última vontade!
— Então deviam ter tratado disso! Registado a oposição! Não pode agora culpar-me a mim!
— Achas que não sei? Achas que não me como por dentro todos os dias por não ter feito nada?
— Isso é problema teu! Eu não escolhi receber este coração! Estava a morrer! Tinha trinta anos!
— E ela tinha trinta e dois! Também estava a viver! Não a protegi da morte… E traí a vontade dela! Deixei que fizessem o que ela não queria!
— Mas legalmente ela era dadora! Não registou oposição de não ser dadora! A lei é clara! Eu não tenho culpa nenhuma!
— Eu sei que não tens. Mas não consigo deixar de sentir que traí a única pessoa que amei. E tu és a prova viva dessa traição.
Ana Leal
- outubro 2025




