O armário, a miúda e o acaso

O armário, a miúda e o acaso

Eu era miúda e virei armário. Não é metáfora, não nesse dia. Foi literal: o corpo pequeno encurralado entre o tanque da roupa e a pia de despejos, e uma avalanche de copos, garrafas, vasos, tudo misturado com o estrondo que ainda hoje consigo ouvir quando fecho os olhos.

O armário não era de confiança. Parecia firme, mas era composto por dois andares: a parte de cima, leve de aspeto, mas pesada no conteúdo, pousava sobre a de baixo sem qualquer fidelidade. Eu, que tinha a mania de procurar o que estava acima do meu alcance, decidi empoleirar-me num banco para espreitar. A curiosidade era a minha forma de subir ao mundo, sempre convencida de que as prateleiras guardavam segredos.

O banco cedeu, o armário tombou, o vidro multiplicou-se em estrelas cintilantes pelo chão. Foi como se tivesse rebentado uma bomba. Eu caí com ele, mas sem me magoar. A minha pele saiu limpa, sem um risco, sem um arranhão. O barulho, esse, ficou dentro de mim, como se a memória tivesse escolhido guardar apenas o susto.

Os meus pais vieram a correr. Primeiro, o silêncio incrédulo — não sabiam se a casa ainda estava inteira. Depois, o desespero de imaginar-me esmagada sob os escombros de cristais domésticos. E, por fim, o espanto de me verem inteira, embora lívida, a respirar como quem acabara de regressar de um mergulho no mar.

Sempre achei que nesse dia a sorte se sentou comigo. Talvez um anjo trapalhão tenha dado um jeito ao ângulo do armário, talvez o banco tenha servido de escudo improvisado, ou talvez o mundo tenha, por um instante, suspendido as leis da física. Eu não me magoei. Só o armário morreu.

Às vezes, penso que esse episódio me deu a primeira lição: a vida é feita de desastres que, felizmente, para muitos, nunca chegam a acontecer.

Há acidentes que nos tocam apenas pelo susto, como ensaios de tragédia. Eu fiquei com essa impressão: que vivi um ensaio, e que a estreia oficial foi adiada.

Depois, cresci com a convicção de que nada é mais perigoso do que a curiosidade. Mas também nada é mais vital. Aquele impulso de subir ao banco, de querer ver para lá do permitido, foi o mesmo que mais tarde me levou a abrir livros escondidos, cartas guardadas em gavetas, diários que não eram meus. Talvez ainda hoje eu viva nesse risco — de tombar armários invisíveis para espreitar o que há lá em cima.

Se pudesse reescrever a cena, talvez desse outros contornos à história. Imagino-me esmagada sob um monte de copos e garrafas, mas a sair de lá vestida de vidro, como uma princesa improvisada, coroada por cacos. Ou, quem sabe, poderia ter descoberto dentro do armário um mundo secreto, como nas histórias em que os móveis escondem passagens para reinos longínquos. Em vez de cacos, teria encontrado florestas, cavalos brancos, talvez um príncipe desajeitado. Mas não. O que encontrei foi o nada — ou melhor, a prova de que o nada também pode ser um milagre.

O mais engraçado é que nunca mais consegui olhar para uma cristaleira sem lhe medir a perna. Entro em casas e calculo mentalmente: se isto tombasse, quem sobreviveria? Às vezes, penso que cada móvel é uma ameaça disfarçada, à espera de curiosidade. Noutras vezes, acho que todos os móveis do mundo conspiram para me proteger, como se tivessem feito um pacto depois daquele dia.

Os meus pais, durante anos, contaram a história às visitas. Era uma espécie de lenda doméstica: a filha endiabrada, tal como a do livro A trinta diabos de Enid Blyton, que sobreviveu a uma bomba de vidro. Eu ouvia-os repetir a narrativa, cada vez mais exagerada, e pensava se um dia eu própria acreditaria nessa versão em vez de na minha. Porque a memória também é isso: um armário que cai, mas de cada vez com um peso diferente.

Se fecho os olhos, ainda vejo o chão coberto de vidros. Mas já não tenho medo. Pelo contrário, há uma beleza no estilhaço: a luz refletida em cada pedaço, como se um arco-íris tivesse caído em fragmentos. Talvez a infância seja isso — uma sucessão de quedas que transformamos, depois, em vitrais.

E é curioso: não me lembro do cheiro, nem da cor dos vasos partidos, nem sequer do tom de voz dos meus pais naquele instante. Mas lembro-me da sensação de estar de pé, ilesa, no meio do caos e dos cacos. Como se tivesse descoberto, pela primeira vez, que sobreviver é uma arte — e que não depende só de nós.

Cresci, e muitas vezes senti que o armário ainda me acompanha. Nas escolhas arriscadas, nos amores precipitados, nas viagens sem mapa — sempre essa vertigem de cair e não me magoar. E, quando me magoei, foi como se finalmente o ensaio tivesse dado lugar à peça verdadeira. Mas mesmo aí, talvez por herança desse dia, aprendi a olhar para os cacos e a encontrar neles alguma ordem secreta.

Hoje, penso que talvez a miúda que fui nunca tenha saído de baixo do armário. Talvez ainda esteja lá, de pé, intacta, cercada de estilhaços, enquanto eu — a que escreve — não passe de uma invenção que ela sonhou para se distrair.

Porque afinal, o que é a memória senão um armário tombado?

E se volto agora a essa cena, é porque nela encontro a origem de tudo: da curiosidade que me move, da coragem inconsciente que às vezes me salva e até da mania de transformar acidentes em histórias. Se o armário não tivesse caído, talvez eu tivesse crescido igual, mas sem esta convicção secreta de que há sempre algo no mundo que me aparará a queda.

Não sei se isso é fé, destino ou pura ingenuidade. Sei apenas que, nesse dia, a vida decidiu não me magoar, decidiu sorrir para mim — e, desde então, carrego esse sorriso como um escudo invisível.

 

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