Clara sempre soubera escutar com as mãos.
Não era metáfora, era vocação. No seu consultório, investigava corpos que se haviam calado há demasiado tempo. Como fisioterapeuta especializada em disfunções pélvicas, mapeava territórios íntimos através de técnicas aprendidas em congressos discretos, onde terapeutas trocavam segredos que ainda não tinham nome autorizado.
O seu caderno era um diário de arqueologia íntima: mulheres cujos orgasmos se perderam após partos violentos, outras marcadas por relações corrosivas, vaginas que se fecharam como flores noturnas. Cada caso era um puzzle sensorial que investigava metodicamente: que palavras despertavam tremores? Que toques libertavam memórias enterradas? Onde se escondiam os mapas do prazer perdido? Os músculos guardavam tudo, tensos como cofres sem chave.
Mas foi com Laura que tudo se tornou pessoal.
Chegou numa manhã húmida de março, o passo firme contrastando com o olhar fugidio. Trinta e nove anos, casada há quinze, mãe de dois filhos. A queixa era familiar:
— Não sinto nada há anos. É como se o meu corpo tivesse esquecido como é… viver. Como se fosse uma casa onde todas as luzes se apagaram.
Clara ouviu, tomando notas não apenas das palavras, mas dos gestos: como Laura cruzava as pernas, como evitava o próprio olhar no espelho. E decidiu aplicar o seu protocolo mais ambicioso: mapeamento somático da memória erótica. Cada sessão seria investigação, para Laura e, secretamente, também para si.
— Vamos explorar o corpo como quem desenterra um segredo antigo — disse-lhe na primeira sessão, preparando o ambiente com luz suave. — Vais aprender a escutar-te com precisão.
Começaram por exercícios de respiração consciente e toques terapêuticos na região abdominal. Clara observava alterações subtis: um arrepio involuntário, um estremecimento impercetível, um rubor que subia pelo pescoço. Anotava tudo meticulosamente. Não como fisioterapeuta distante, mas como exploradora de um território vivo.
— É estranho — disse Laura, numa quarta sessão, os olhos fechados. — Sinto-me a conhecer uma mulher que vive dentro de mim, mas que eu trancara numa cave escura há décadas.
Clara sorriu profissionalmente, mas por dentro, algo nela também despertava. Cada redescoberta de Laura brilhava no seu próprio corpo, adormecido por rotinas clínicas e uma solidão bem treinada.
Na quinta sessão, Laura pediu para ir mais fundo.
— Quero saber o que está guardado lá dentro. Tenho a sensação de que há coisas importantes escondidas.
Clara explicou o protocolo, a importância do consentimento contínuo, os limites inflexíveis. Quando os seus dedos encontraram um ponto de tensão profunda, Laura arquejou, não de dor física, mas de algo mais antigo.
— Tinha dezassete anos — murmurou, olhos fechados, a respiração alterada. — Ele disse que eu nunca saberia dar prazer a ninguém. Que havia algo fundamentalmente errado comigo.
Clara permaneceu em silêncio, mas sentiu o próprio pulso acelerar. A sala ficou suspensa numa intimidade quase sagrada.
Depois dessa sessão, algo mudou decisivamente. Laura passou a explorar-se em casa com rigor, seguindo as instruções que Clara lhe dera, partilhando descobertas com uma franqueza crescente que fazia Clara corar quando relia as notas.
— Descobri que se tocar precisamente aqui — indicava um ponto subtil — e respirar de uma forma específica, o corpo começa a… acender. Como se voltasse a lembrar sensações perdidas.
Clara escutava, anotava com precisão. Mas as noites tornaram-se exercícios de autocontrolo, o corpo lembrando-se de sensações que pensara esquecidas. Não era ainda desejo declarado — era antecipação crescente. A proximidade física, a vulnerabilidade partilhada, uma linha ténue que tremia entre profissionalismo e fascínio genuíno.
Na oitava sessão, durante um exercício intenso de respiração pélvica, o corpo de Laura começou a tremer incontrolavelmente. Clara recuou ligeiramente e limitou-se a acompanhar o fluxo com a própria respiração sincronizada.
Não houve grito dramático. Apenas uma suspensão prolongada no ar, como se o tempo hesitasse perante algo sagrado. Um estremecer que subiu do ventre aos lábios entreabertos, contido, mas absolutamente inegável. E depois um sussurro:
— Pensava que isto era impossível para mim.
Clara ficou imóvel, quase sem respirar. Sentiu um calor desconhecido espalhar-se-lhe no ventre. Não era excitação bruta, era outra coisa mais complexa, como se o corpo de Laura, ao reencontrar-se, tivesse também chamado o seu de volta à vida.
Na sessão seguinte, Clara tomou a decisão mais difícil da carreira.
— Laura, preciso ser honesta. Estou a ultrapassar um limite ético fundamental. Desenvolvi sentimentos que colocam em risco a integridade terapêutica. Proponho encaminhá-la para outro profissional.
Laura ficou em silêncio por longos momentos. Depois, pousou a mão sobre o próprio colo, gesto pequeno, mas sereno.
— E se eu lhe disser que também sinto algo semelhante? Não apenas gratidão… mas algo que começa a parecer desejo?
Clara baixou os olhos.
— Isso não muda o facto de eu ter responsabilidade ética sobre o teu processo.
— Então termina oficialmente — disse Laura com determinação. — E depois, se quiseres… conversamos como duas mulheres que se encontraram no momento certo.
Clara acenou relutantemente. Nas três sessões finais, o ar tornou-se progressivamente mais denso. Cada toque era medido ao milímetro. A tensão flutuava entre elas, presente, mas não nomeada.
Laura completou a jornada de reconexão com um brilho novo no olhar.
No relatório final, Clara escreveu:
“Paciente restabeleceu a ligação com a própria sexualidade através de abordagem somática guiada. Objetivos terapêuticos atingidos com sucesso.”
Não mencionou o café marcado duas semanas depois. Nem o vestido azul-claro que Laura usava, leve, solto, como se também a pele tivesse aprendido a respirar sem constrangimentos.
Algumas histórias de cura revelam-se simultaneamente histórias de despertar erótico. Mas só quando cada uma acontece no seu tempo sagrado podem verdadeiramente entrelaçar-se.
NOTA:
Para escrever este conto, pesquisei sobre fisioterapia pélvica e as abordagens somáticas de recuperação do prazer feminino após trauma ou eventos clínicos.
Falei com uma fisioterapeuta que trabalha especificamente nesta área e consultei casos clínicos que constam na internet e textos sobre o corpo, trauma, memória e desejo.
Quis investigar não só o erotismo físico, mas também o emocional.

Ana Leal
- julho 2025