Dá-me notícias de mim

Dá-me notícias de mim

Se numa noite de outono um viajante viesse trazer-me notícias dela, eu não o maçaria, caro leitor. A minha alma estaria cheia e eu não precisaria de si. Mas preciso. Da sua presença silenciosa a provar que ainda há espaço no mundo. Vinte e nove dias sem sair de casa. A voz que ouço, quando a ensaio, já não me reconhece. Um eco que perdeu a origem. Posso pedir-lhe que se sente ao meu lado? A sua presença apazigua-me.

É noite. É outono. Mas não há viajante. Nem notícias dela. Só a chuva miúda que escorre para lá desta varanda onde nos abrigamos. Veja como o asfalto reflete a luz dos faróis lá em baixo na avenida. E todas as luzes dos candeeiros que se perfilam, estáticos, um longo exército de soldados sem guerra aparente. A minha também é invisível.

Perdoe-me. Falo demais. Logo eu, poeta, a enchê-lo de prosa.

Pesam-me os olhos. Que figura é aquela que sobe pelo plátano? Eu e ela sempre receámos que alguém chegasse a esta varanda, subindo assim. Gabardina cor de noite, chapéu largo a tapar o rosto. Será um viajante? Vejamos que notícias traz.

Uma fotografia na mão. Eu e ela no último jantar fora. Já estava doente, mas quis ver o mar. Desvanece-se, o viajante.

Leitor, onde vai? Não lhe dei permissão para entrar na sala. Apossa-se assim da minha casa? Espere. Não consigo segui-lo com facilidade. Estou cheio deste vazio, apenas coberto por um simulacro de ossos e pele.

Esse álbum que tem nas mãos é antigo. Memórias em papel cansado que ainda respiram. Eu sempre com ela. Ela nunca sem mim. Veja como corre. O cabelo a fugir-lhe do rosto, um pé no ar, o corpo inclinado para o riso, o sinal do lábio a chamar. Como pode estar tão quieta agora? Repare: a presença dele é sempre distante, como uma ausência que não se vê. Porque acaricia a fotografia com essa familiaridade? Parece que quer o protagonismo na minha história.

Uma mensagem. A minha excêntrica amiga que não desiste de mim. «Quando sais de casa? Tenho o guarda-chuva pronto.» É uma coisa nossa, isto do guarda-chuva. Com o meu, protegi-a da água que teimava em molhar o pior dia da vida dela e de alguns olhares de curiosidade mórbida. Agora, quer retribuir. Mas eu não quero proteção, apenas esquecimento. Flutuo num limbo onde o tempo se dissolve. Nem dentro nem fora do mundo.

Sim, tem razão. Nunca houve outro amor. Tanta vida perdida. É o que dizem. Agora? Não, é tarde. Falta-me vontade, perdi o rumo. Não saberia viver entre os normais. Fazer o expectável. E se não fosse capaz? E se tivesse de enfrentar o fracasso? Muito pior do que manter esta distância do mundo. Por outro lado, há um chapéu-de-chuva à minha espera… Não, não vale a pena tentar. Não me tente, leitor. A sua existência serve apenas para me ouvir. Não amue. Sabe que não é real e que a qualquer momento posso esconjurá-lo.

Está escuro. Cada vez mais escuro. E frio, não sente? A sala parece cada vez mais pequena. São muitas tralhas acumuladas ao longo da vida. Não, não sou velho. Sou poeta. Gosto de coisas velhas. Esta pequenez é que é nova.

Não se assuste, é a campainha da entrada do prédio. Toca de vez em quando. Aqui em cima, nunca. O elevador só para neste andar se eu der permissão.

Tem razão. Agora é a campainha cá de cima. Ignoremo-la. É noite. É outono. O viajante já se foi e não trouxe notícias. Que insistência. Vou espreitar pelo óculo. Mantenha-se silencioso. Os tapetes cobrem quase todo o pavimento, abafam os meus passos. E eu estou leve. Um vazio coberto de ossos e pele, lembra-se? Venha, fique ao meu lado.

Impossível! A minha excêntrica amiga parada no hall. Veja bem. Veste uma gabardina cor de noite e usa um chapéu largo que lhe tapa quase todo o rosto. Um pouco mais largo e não a reconheceria. Sim, traz sempre vestido aquele sorriso aberto. Mesmo em noites de outono. Espera que eu abra a porta. Paciente como só quem conhece a dor sabe ser. Já vi, não precisa de o assinalar. Na mão esquerda, um chapéu-de-chuva, as cores a ferirem o escuro.

Voltemos à sala. Não insistirá muito tempo se eu não responder. Sempre respeitou os meus silêncios.

A campainha repete-se. Não, leitor, já lhe pedi que não me tentasse. Deixe-me neste silêncio. Falo a linguagem desta vida. Como saberia eu articular as palavras da outra? Ela espera uma voz diferente que eu desconheço. A escuridão faz-se mais densa. Melhor assim. Só não percebo porque se encolhem as paredes. Talvez seja o vazio a ganhar corpo. Esta casa coube em nós dois; agora apouca-se. Teria bastado o colo em que ela sempre me protegeu. E o meu que tanto a amou. Não. Como abandonar o local onde criou raízes o útero sagrado que me acolheu, cordão umbilical jamais cortado? Não pode haver outra vida. Não pode haver vida. Mas aqui sufoco. Estas paredes que se vão apertando. E a campainha que não para.

O óculo. Saia da frente. Ela continua ali, o sorriso aberto. E aquelas cores do chapéu-de-chuva a estrelejarem. Não precisa de me apontar o cabide. O meu sobretudo repousa aí há vinte e nove dias.

Deixe-me virar para a sala. Está bem, fico de lado. A sala da direita, a porta da esquerda. Como é que de repente há tanto breu nesta casa e tanta luz fora dela? Leitor, que sinal é esse no seu lábio? Leitor! Onde está? O óculo. Tanta luz. E se numa noite de outono uma viajante…

Engulo o silêncio, tento firmar as pernas bambas, é o coração que num dos descompassos pega no sobretudo e roda a maçaneta. A porta liberta-se.

O sorriso que me espera abre o chapéu-de-chuva, o braço separa-se um pouco do tronco, criando o espaço exato onde cabe a minha mão.

— Vamos?

— Vamos, viajante. Dá-me notícias de mim.

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Paula Campos

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