«Mamã, não falta um “há” no título deste livro?» A pergunta da minha filha de onze anos, ao encontrar Quantos Ventos na Terra na mesa de cabeceira, fez-me sorrir.
Expliquei-lhe que os títulos dos livros nem sempre fazem sentido antes de os lermos — e que descobrir o porquê de um título inusitado faz parte da magia da leitura.
Aproveitei para mostrar-lhe alguns livros com títulos originais: História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar, de Luis Sepúlveda, O perigo de estar no meu perfeito juízo, de Rosa Montero, Admirável Mundo Verde, de Filipa Fonseca Silva. «Tudo livros que lerás um dia, a começar por este, do Luís Sepúlveda», acrescentei, e deixei-lhe a semente de curiosidade. «E qual é a história dos ventos na terra?»
Expliquei-lhe resumidamente que era um livro que falava sobre um grupo de crianças abandonadas pelos pais que viviam numa vila fictícia chamada Mont-o-Ver e de uma caça ao tesouro. «Gosto da caça ao tesouro, mas de imaginar crianças sozinhas, não.», respondeu, e fez-me refletir sobre o que lera e sentira com este livro da Maria Isaac.
A primeira recordação que me surgiu quando entrei nesta história foi a obra Capitães da Areia, de Jorge Amado. Também em Quantos Ventos na Terra, existe um bando de crianças mal-aventuradas. Se em Jorge Amado a infância marginalizada ganha um tom quase mítico, Maria Isaac constrói uma visão mais crua, a roçar o trágico.
Este é um enredo com várias camadas, muitas personagens que necessitam de ser acompanhadas de forma cuidada porque nem sempre o foco é o «Bando dos Canaviais». Há muitas histórias que se tocam, que se contradizem e que nunca nos deixam, enquanto leitores, descuidados.
A linguagem acompanha a crueza da narrativa. Há palavrões, frases diretas, sem filtros — porque as crianças não têm a contemplação da linguagem. Existe uma visão naturalista sobre o «bando», os marginais da sociedade, diversas pessoas com o mesmo interesse num só lugar, do qual os amores perdidos, as rivalidades, as alianças estratégicas e a violência fazem parte.
A violência é a forma de as crianças se imporem ao mundo — um mundo ao avesso, em que os adultos são omissos, incapazes, e as crianças assumem uma posição de poder e força.
Quantos Ventos na Terra foge do típico romance burguês, amoroso. É uma obra de influências neorrealistas, num local sem expetativas de futuro, com crianças que têm o desenrascanço como lema de vida e que são joguetes dos adultos. O conjunto de todas estas personagens cria o palco ficcional, no qual se denota uma certa portugalidade: um bairro, uma vila, tacanha, pequena, o marginal dentro do marginal.
Trata-se de uma história complexa passada no presente e no passado com laivos de realismo mágico (além de uma caça ao tesouro num velho forte, de um corpo misterioso, também temos fantasmas e uma menina albina chamada Cuca), num universo alternativo em que se concentram em pequena escala todos os grandes males da sociedade.
É um livro que fala sobre um «nós» e sobre uns «outros», sendo o grupo superior à soma dos indivíduos. Um espaço literário idealista em que os mais frágeis também podem ser elementos de força. Maria Isaac é uma talentosa jovem escritora portuguesa que recomendo.
O original desta resenha literária está disponível no jornal Sul Informação.