Eu, Nellie Bly

Entrei. Sinto as olheiras e os olhos afundados no rosto. Tento manter o olhar distante, como se de loucura se tratasse. Tenho um receio enorme de ser descoberta no teatro que represento.

Tudo é branco à minha volta. Paredes, mesas, cadeiras, ombreiras das portas, as severas fardas das enfermeiras de olhar sisudo, assim como do médico que me dá a mão para me transportar por corredores brancos infinitos, até me depositar num quarto branco, numa cama de lençóis e coberta branca, pequena mesa de cabeceira branca, farda grosseira de tecido áspero e remendado, e um par de chinelos de quarto grosseiros e desgastados.

Sento-me devagar à beira da cama de olhar fixo na parede à minha frente, e aguardo que termine a retórica das conveniências e as regras a implementar no meu dia a dia. O médico sai, fechando a porta atrás de si, e deixo cair os ombros sem, no entanto, movimentar a cabeça. Sei que me observam. Sinto, sim, tenho a certeza disso.

Foi uma decisão de última hora. Como jornalista neste estado norte-americano, muito mais à frente do que o resto do mundo, ou assim se descreve o nosso estado perante o restante universo mundial, tenho a sensação de que fui longe demais.

 Mesmo com um ultimato de apenas dez dias à restante equipa, e com tudo o que descobri como jornalista, muito provavelmente não sairei daqui a mesma Nellie que sou hoje. Porque, na verdade, acabei de entrar.

São oito e pouco da manhã, disso tenho a certeza. Sinto o corpo a tremer da adrenalina que não controlo, embora eu tente à viva força disfarçar. Deixo-me estar sentada na beira da cama, ajeitando-me um pouco para ficar mais confortável. Conforto que tenho a certeza que vai descambar rapidamente, ou não estaria eu aqui para me certificar que as minhas pesquisas sobre este hospital psiquiátrico se reduzem apenas a uma veracidade aterradora.

Ouço gemidos ao fundo do corredor. Vêm de várias portas fechadas,  assim me parece. Engulo em seco e aguardo. Sons de passos aproximam-se da porta do meu quarto. Pela visão periférica, vejo a maçaneta da porta rodar, e depois abrir-se devagar. Não olho, não posso perder a postura tantas vezes ensaiada no meu quarto.

Uma bata branca imaculada aproxima-se de mim. Uma coifa na cabeça impecavelmente engomada e endurecida pela goma que a encharcou a frio, e pelo ferro quente que a moldou. Botas pretas de couro bem cuidadas pelo excesso de banha diária.

Mantenho a minha posição inicial, como se a minha vida fosse apenas um ponto destacado na parede branca à minha frente. Sinto o meu braço esquerdo ser levantado e de uma forma derradeira, puxar o restante do meu corpo para me elevar. A voz ecoou no silêncio da minha mente.

— A menina deve acompanhar-me para o seu primeiro exame. Mude de roupa imediatamente. Volto daqui a cinco minutos.

Faço questão de me trocar desconfortavelmente para o trapo exposto em cima da cama, e volto a sentar-me na mesma posição.

Volta. Deixo-me levar pela mão fria, desnuda do pulso às falangetas, com nós dos dedos evidentes, e que dolorosamente magoam os meus pelo excessivo aperto. Tento desempenhar o meu papel o melhor possível, sempre no maior silêncio. Pelo infindável corredor, mulheres acompanhadas por mais coifas que as amparam com destino desconhecido. Os chinelos das pacientes mal abafam o som arrastado dos  passos, enquanto as botas escuras das enfermeiras ecoam autoritárias pelos corredores frios. Estes são os únicos elementos escuros num ambiente gélido, vestido de branco.

De frente para a porta, à esquerda, a enfermeira bate com brusquidão, fazendo com que as minhas retinas dilatem de pavor. Do outro lado ouve-se:

— Entre!

E nesse ainda lúcido momento, faço alguma pressão para atrasar a entrada, apenas para impor ao meu cérebro que hoje é dia 25 de setembro de 1887 e o meu nome é Nellie Bly. Frase que vou repetindo em silêncio até me inserirem na banheira desnuda no meio do quarto.

Hoje é dia 25 de setembro de 1887, e o meu nome é Nellie Bly.

Agonizo enquanto vários baldes de água fria disfrutam do calor do meu corpo. Pedras de gelo acompanham-na, boiando ao nível da água que me mergulha cada vez mais. É irresistível não gritar e irresistível não tremer de um frio nunca sentido na pele, nos ossos e já na medula incapacitada de movimento.

Hoje é dia 25 de setembro de 1887, e o meu nome é Nellie Bly

A porta fecha-se com força. Estou deitada na cama do quarto em que me alojaram. Reteso o corpo na posição fecal e sopro no meu colo um folego de calor aquecido pelas entranhas que se revoltam consideravelmente com a experiência. Continuo azulada na pele e com imagens distorcidas na mente, embora ainda consiga saber quem sou e em que dia estamos. Alucino entre a dor e o frio. O trapo molhado que me envolve consegue estar mais quente que eu. Recordo o embalar da minha mãe aquando pequena e, por momentos, deixo o calor da memória envolver-me e salvar-me.

Acordo de sobressalto com a porta a abrir e a bater na parede. Um tabuleiro é colocado agressivamente na mesa de cabeceira branca. Faço um esforço para recapitular quem sou, embora já sem a certeza do dia em que me encontro. Nados mortos esvoaçantes a bailar no prato de uma sopa suja. Ao lado, um cheiro nauseabundo de uma carne esverdeada pela degradação do tempo, e à beira desta um pedaço de pão bolorento.

Um puxão de cabelo surge no meu coro cabeludo e uma voz grave murmura-me ao ouvido:

— Come tudo e serás uma linda menina!

Dez dias internada no asilo, sujeita a atrocidades diárias, apenas para provar os abusos e condições desumanas, aplicadas às mulheres da época.

«Sou Nellie Bay, mas não sei de onde venho…»

Considerada insana.

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Susana Menezes Forte

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