Nos sonhos comandamos nós

Ela despertava-me uma grande curiosidade. A minha família falava dela com saudade e chamava-a poeta. A pergunta que me fazia a mim mesmo, mais do que uma vez por dia, especialmente quando a ouvia gemer, era: como podem as criaturas belas não andar? Ou como pode um poeta não conseguir falar? Interessava-me por tudo o que estivesse relacionado com aquela pobre alminha, como também era chamada lá por casa.

Por vezes, fingia estar atento às pinturas e mirava a minha mãe, com voz doce e terna, sem pressa, abrir a porta e anunciar-se: mãezinha, trouxe-lhe o almoço. Depois, fechava a porta atrás de si. E eu ficava arreliado com a angústia de não a ter conhecido.

De tanto desejar ver a poeta, levava-a comigo nos sonhos. Povoávamos coretos, descia escorregas com ela sempre a amparar-me a queda. Nos meus sonhos, a mãe da minha mãe não tinha cabelos de algodão, nem pele translúcida e mãos com linhas roxas. Sonhava-a de cabelo armado e unhas pintadas de prata. Para mim, era um princípio simples, nos meus sonhos, quem comandava era eu.

Sabia o que se passava em casa e aquilo que me escondiam. Ouvia soluços à noite perdidos na escuridão, faíscas de dor que corriam pelos corredores de casa e se instalavam aos pés da cama, implorando por uma solução. Como criança, não tenho todas as soluções do mundo, mas sei que a minha mãe, nestes momentos, precisava tanto de um abraço como aqueles que ela me oferecia quando eu acordava a meio da noite com um pesadelo.

Um dia perguntei: porque não me deixas ver a avó?

­Porque a avó está doente.

­Mas quando eu estou doente os tios vêm-me visitar.

­A doença da avó é na cabeça. Quero que te lembres dela como era antes de ter ficado assim.

Fiquei mais descansado com a conversa, porque vi sinceridade debaixo daquelas cortinas de água. A minha mãe desconhecia que tenho modos particulares de atuar. Assim, após ajoelhar-me ao lado da cama a rezar ao meu anjo da guarda, chamava pela avó Lurdes e pedia para que entrasse nos meus sonhos.

E ela entrava. Tínhamos longas conversas sobre a escola, sobre o passado dela e da minha família. Pedia-lhe para me descrever momentos felizes porque me faziam rir. Em todos esses momentos, a família estava completa e sorridente. Às vezes, a poeta sentava-se num baloiço ao meu lado, com as sabrinas beges a cortarem o ar, a saia comprida a ganhar volume, o cabelo a afastar-se do rosto, enquanto balançava. E não há como uma mãe para servir tanto de confidente como delatora. Levou-me pela mão a visitar a filha criança, o joelho esfolado na primeira vez que usou uns patins, o choro esganiçado de menina mimada que não sabia que era feliz. Nos sonhos, acompanhou-me pelo bairro onde morava, comprou-me pirulitos feitos pela Dona Fátima no carrinho dos doces e víamos formas de animais nas nuvens. Por fim, embalava-me no colo e dizia-me, não te esqueças de ser a voz do nosso amor.

Depois, acordava, nos meus lençóis do Harry Potter, a saber que a poeta tinha poetizado comigo durante a noite. Preenchia os vários cantos do quarto do neto. Aquela pobre alminha que ­ afinal era rica, a filha alimentava-a, lavava-a, vestia-a, beijava-lhe o cocuruto e chorava por ela quando a Lua enfeitava o céu. Era uma mãe que ainda amava muito a filha e arranjou um modo de lho dizer. O amor, mesmo em silêncio, encontra uma forma de falar. Através de mim. Eu era poesia viva.

Hoje, o meu filho brinca no quarto onde me encontro com a minha mãe. Acabei de cuidar dela, de lhe ajeitar os cabelos brancos e de lhe pedir que entre nos sonhos do Frederico, para lhe dizer o quanto nos ama. Tal como a mãe dela fez comigo quando eu ainda era uma criança.

A poesia nunca morrerá.

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Claudia Passarinho

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