Uma viagem literária inesperada

É um livro em jeito de mosaico, de histórias entrelaçadas, contos ou episódios separados, a roçar o nonsense e uma certa comicidade.
Não se deixe enganar pela capa, nem pelo título, Grande Turismo não é um livro sobre um destino turístico, férias ou carros (ou até pode ser).

«Quando eu era miúdo, não ligava muito a consolas, mas de vez em quando, em casa do Tiago, jogava jogos de futebol e de corridas de carros na PlayStation dele. O jogo favorito do Tiago era o Gran Turismo.»

Este é um excerto do capítulo «O Grande Turismo» que dá título ao livro, mas, tirando estas quatro páginas, não existe mais nenhuma alusão ao famoso jogo de simulação de corridas de carros. Todavia, este é um livro a grande velocidade e com declaradas simulações, começando pelo facto de a personagem principal ter o mesmo nome do autor: João Pedro Vala (mera coincidência, claro).

Grande Turismo é um jogo literário entre a realidade e a ficção, um livro bizarro e idiossincrático. Somos recebidos por um narrador não confiável que constrói e desconstrói a narrativa a seu bel-prazer, que assume que faz literatura, umas vezes sim, outras vezes não. Trata-se de uma viagem do ego, uma brincadeira entre a voz narrativa, a personagem principal, o leitor e o próprio escritor. Grande Turismo obriga-nos a ser cúmplices e leva-nos à descoberta do estado de introspeção de quem narra. No final, introduz a visão de um outro narrador que repõe a verdade. Uma história dentro da história. A escrita do inesperado, da provocação.

João Pedro Vala (autor) conduz-nos por imagens e pensamentos grandiosos, cinematográficos. Revela-nos o lado humano, do exagero, do drama da banalidade da existência humana. Há, em cada página, universalidade e mergulho na individualidade de cada um de nós.

É um livro em jeito de mosaico, de histórias entrelaçadas, contos ou episódios separados, a roçar o nonsense e uma certa comicidade. A autoironia rouba-nos vários sorrisos. A personagem, que é ele próprio, torna-se desconcertante, principalmente quando a preocupação com a forma de morrer lhe ocupa a mente (tal como a nossa?), na inquietação da imagem que prevalecerá após a morte ou na morte. O que pensarão dele se o encontrarem morto numa situação confrangedora?

A linguagem disruptiva e original de Grande Turismo surpreende tanto quanto a inexistência de uma estrutura narrativa convencional. O humor é a língua materna de João Pedro Vala, acentuado pela agilidade intelectual e a rebeldia de quem utiliza a escrita para aprender a ser escritor. Há uma navegação introspetiva, um cenário, uma sátira social. São evidentes as marcas da oralidade no texto, o tom conversacional — uma conversa com o leitor, para fugir da solidão. Também é explorado o lado relacional das personagens: Miguel, Tiago e Inês aparecem excessivos nos seus problemas, uma espiral de obsessão compulsiva numa viagem pelas hipérboles de João Pedro Vala.

Grande Turismo é uma grande e inesperada jornada literária que recomendo.

O original desta resenha literária está disponível no jornal Sul Informação. 

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Analita Alves dos Santos

Inspiro escritores a sentir mais confiança na sua escrita, a evitar a procrastinação e a partilhar as suas histórias com o mundo.

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