Conta-me histórias daquilo que eu não sei

Vivemos num estado permanente de embriaguez comunicativa e informativa, mas isolados. Faltam-nos os valores aglutinadores que as histórias nos transmitem. Contar histórias pressupõe vagar, um olhar demorado pelo mundo; e a pressa hoje chega sempre primeiro a qualquer lugar.

Deixámos de contar histórias. Comunicamos em excesso. Passamos horas a publicar, a partilhar conteúdos e a gostar de publicações nas redes sociais.Vivemos uma crise da narração. Quem o diz é o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, no livro “A Crise da Narração”, publicado pela Relógio D’Água, obra que recomendo (trampolim para estas linhas).

Pergunto-lhe: quando foi a última vez que escutou alguém a contar uma boa história? E qual a importância da arte de contar histórias na nossa vida?

As narrativas criam coesão social, memórias que permanecem e que são partilháveis. Um indivíduo sem recordações mergulha no “vácuo existencial” teorizado por Viktor E. Frankl; no desencantamento do mundo; num sentimento de vazio e de falta de sentido das coisas. “Nenhum instinto lhe diz o que tem de fazer e nenhuma tradição lhe diz o que deveria fazer; por vezes, nem sequer sabe o que quer fazer. Em vez disso, ou deseja fazer o que os outros fazem (conformismo) ou faz o que as outras pessoas querem que faça (totalitarismo)”, lê-se em “O Homem em Busca de um Sentido”, de Viktor E. Frankl. É assim que estamos?

Na ausência de narrativas, a vida discorre sem imaginação, nua e crua, despida de sentido ou identidade. Deixa de ter um princípio e um fim à vista e passa a ser apenas fragmentos, momentos informativos: stories, posts, shares, likes. Mas o Homem precisa do sentimento de pertença, “ao serviço desta necessidade colocam-se as narrativas populistas e nacionalistas, de extrema-direita e tribais, bem como as narrativas conspirativas. Surgem como uma oferta de sentido e de identidade”. Neste abril de 2024, em que a madura democracia celebra 50 anos, precisamos de estar mais atentos do que nunca às narrativas que ganham pouso.

Vivemos num estado permanente de embriaguez comunicativa e informativa, mas isolados. Faltam-nos os valores aglutinadores que as histórias nos transmitem. Contar histórias pressupõe vagar, um olhar demorado pelo mundo; e a pressa hoje chega sempre primeiro a qualquer lugar.

Já reparou que até nos consultórios médicos deixou de existir tempo, espaço ou paciência para as histórias? Poucos são os médicos que tiram os olhos do ecrã para olharem os seus pacientes ou que emprestam os ouvidos para ouvir as suas narrativas.

Na era digital, ultrapassámos a escolha entre o “viver ou contar” para o “viver ou publicar”, uma necessidade relacionada com um vazio interior, longe da pedantice e mais próxima da busca de uma qualquer identidade segura. “As selfies reproduzem a forma vazio do eu”, tece Byung-Chul Han.

Como podemos falar em crise de narração se anunciamos mais do que nunca o storytelling? Segundo o autor sul-coreano, o storytelling foi apropriado pelo capitalismo para a produção de narrativas, como forma de consumo, associando produtos a emoções. Storytelling é agora storyselling. “A sociedade está cada vez mais pobre em termos de experiência transmissível, de narração oral. Já nada se lega, já nada se narra”, continua o filósofo sul-coreano. É preciso resgatar o storytelling e devolver-lhe a alma.

A crise da narração instala-se quando as celebrações passam a ser sinónimo de consumismo, assumem a forma de eventos ou espetáculos; e a vida resume-se a tempo de trabalho e ócio, produção e consumo. “Nenhum storytelling será capaz de voltar a acender a fogueira à volta da qual as pessoas se juntam para contar histórias umas às outras”, assevera Byung-Chul Han. Curiosamente, em conversa recente com uma amiga sueca, fiquei a saber que esta dinamiza em Estocolmo encontros presenciais em que as pessoas contam histórias umas às outras. Não são grupos terapêuticos; são pessoas que se reúnem para partilhar narrativas. Simples assim. Esqueci-me de lhe perguntar se o calor do fogo se faz presente nestes encontros.

Tal como a arte de contar, também o toque físico está em declínio e o Homem ressente-se: isolamento, solidão, depressão, suicídio. “A mão que toca e a voz que narra têm o mesmo poder de cura. Criam proximidade e confiança. Desfazem tensões e expulsam o medo”, explica o filósofo. O erotismo demorado, repleto de preliminares, deu lugar à pornografia, direta ao assunto. Estamos junto de muitos, mas intimamente próximos de poucos. Mais um problema desta era da fria transparência, da pressa, da factualidade sem aura ou magia. Mas esse é um assunto para outra história.

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Esta crónica foi originalmente publicada no Repórter Sombra. 

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Analita Alves dos Santos

Analita Alves dos Santos

Inspiro escritores a sentir mais confiança na sua escrita, a evitar a procrastinação e a partilhar as suas histórias com o mundo.

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