«Ser escritor é pertencer a uma espécie maldita capaz de se alastrar por fissuras. É possuir o peito apinhado de intrusos, rostos, vozes e sombras ansiosas por sossego, enquanto se enfrenta folhas desabitadas, uma e outra vez, na busca da frase que irá desfiar o mundo inteiro».
Não é assim que começa «Antes que a luz apague a escuridão», de Telmo Mendes, mas estas linhas do segundo capítulo fizeram-me acreditar que leria o livro sobre a vida de um escritor. Enganei-me. Esta não é a história de uma personagem ou de personagens, mas sim de uma vila, «um lugar tão longe que não tinha nome, só vila».
Por instantes, veio-me à mente «Galveias», de José Luís Peixoto, mas essa é toda uma outra história.
A vila não é apenas um cenário onde o mar é céu e inferno. Este espaço, que é mais do que um cenário, reflete o estado de espírito dos habitantes, envolve-os e conduz as suas emoções. Neste sítio ficcional, que poderia ser um lugarejo na costa alentejana, Telmo Mendes permite que as suas personagens — seres incompletos, repletos de falhas e dúvidas — vivam. Todas as personagens caminham para uma resolução. Algumas alcançarão a redenção, outras não.
Há personagens marcantes como o Marco Marreco e a sua grande paixão pelos livros de poesia; Gertrudes, Pito Arisco e Maria do Assobio — as velhas viperinas que nunca perdem um momento para destilar veneno; Gabriela — vítima de violência doméstica, que procura esquecer o passado no anonimato; um padre que perdeu a amada e permanece em confronto com Deus e o Amor; e Maria do Mar — a quem o mar roubou o marido.
Estas e outras personagens respiram o seu quotidiano nas trezentas páginas deste livro e geram no leitor emoção e empatia pela sua humildade e imperfeições. Mesmo Filipe, o namorado de Inês (a proprietária da livraria daquele lugar do fim), e eventual antagonista, explica-se, tem consciência de si e, só por isso, conquista-nos.
Poderia falar de um número excessivo de personagens, de vidas, mas todas são relevantes e contribuem para a energia da vila. As personagens são o lugar. É a morte de um habitante, de seu nome Raúl, que reúne as pessoas e obriga-as a virarem-se para dentro e umas para as outras. Encontros reforçados, depois, pela grande tempestade, que vai chocalhar o lugar e os corações daquela gente.
O ambiente e o tom fantástico são a cola deste romance, que tudo envolve e nada explica, num cenário irreal, longínquo, mas simultaneamente tão português.
Numa escrita fresca, que evidencia fuga à norma do que se escreve atualmente em Portugal, releva a prosa de verve poética, mistura de pinceladas de fantasia com filosofia, transversal a toda a obra. A linguagem cuidada, pensada, a frase lapidada, recorda-nos aforismos. É também escrita retratista, humanizante, com muitos rendez-vous felizes entre palavras que nunca se tinham encontrado.
Acontece certo reavivar do estilo barroco, no seu contraditório, gosto pelo paradoxo, contraste entre a luz e a escuridão, que o próprio título do livro denota. Cada frase completa é quase uma pequena história, como este exemplo, entre tantos outros: «O presente é por definição esse lugar situado entre o instante perdido e o fascínio da continuidade». É obra que convida a leitura demorada, não pela complexidade da narrativa, mas por frases que extravasam ternura e reflexão ontológica, página sim, página sim. Julgo que a alma amorosa, poética e musical de Telmo Mendes vive nas entrelinhas.
«Aos poucos, a vida vai passando, a dor vai ficando mais velha e arrumada, distante como tudo o que já foi», mas há livros que ficam na memória. Este é um deles.
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O original deste texto encontra-se no jornal Sul Informação onde assino mensalmente uma rubrica dedicada à crítica literária intitulada «Pelo Mundo dos Livros».
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