O Trem de Cozinha

trem de cozinha

     Era uma vez um tacho comilão, que só queria saber da sua barriga. Sentia-se importante, pois comida não lhe faltava, e gabava-se disso. Os outros, amontoados a um canto do armário, sentiam-se pequeninos, tristes e abandonados.

     Um belo dia, estava ele limpo e asseado, saltaram-lhe para dentro na tentativa de o esconder, para que, assim, fossem os primeiros a ser usados. Ele barafustou e, salientando o seu ventre com as suas asas, que, como devem imaginar, não abarcavam toda a sua amplitude, disse-lhes:

     ─ Vocês nunca hão de ter uma barriga igual à minha, além de que sou o preferido da casa ─ assim se vangloriava. ─ Eu sou tão bom, que até à mesa me levam; dispenso as terrinas. Comigo, é só comida de conforto.

     O tacho mais pequeno, num esgar metálico, retorquiu:

     ─ Achas-te o maior? Olha para ti… Sujo, cheio de nódoas entranhadas de gordura da comida. Que mau aspeto!

     ─ Eh eh! eh! ─ ria-se a infusa ali mesmo ao lado. ─ Pois tu nunca terás a minha elegância. Sou delicada, aqueço e fervo líquidos, e também vou à mesa.

    ─ Olha para mim ─ disse a sertã. ─ Eu sou como um livro aberto. O que puserem em mim, fica tudo à vista, e sou bem mais rápida que tu. ─ Todos tinham algo a apontar, e, no calor da discussão, saltava-lhes a tampa, ou azedava a comida.

    Num almoço de família em que todos os tachos estavam presentes, bem como os companheiros de refeição, e já destampados, a fanfarronice do tacho acabaria ali, em frente a todos. O saleiro mandou-lhe sal para dentro. A almotolia jogou-lhe vinagre e azeite. O pimenteiro, pimenta. E o saca-rolhas, com a sua rosca afiada, fez-lhe um furo bem no meio da barriguinha que ele tanto prezava, fazendo-o verter o molho do belo guisado.

    ─ Socorro! — gritava. Mas todos fingiram não ouvir. Era o seu fim ─ pensou.

    A concha mandou-o calar. Os pratos partiram-se numa cacofonia de riso. Os copos vibraram em gargalhadas sonoras. Os guardanapos riram-se a bandeiras despregadas. E, dele, escorreram lágrimas aos molhos, que inundaram toda a mesa A garrafa de vinho juntou-se-lhes, derramando alegria.

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Maria Gaio

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