Queima das Fitas

Queima das Fitas

As badaladas da meia-noite calaram-se para os acordes das guitarras de Coimbra. Com a Serenata, começava a minha última Queima das Fitas. Sentada nas pedras morenas da velha Sé, com outros quintanistas, ouvia gemerem cordas nos dedos dos amigos, trinarem vozes dos que me tinham acompanhado nos últimos quatro fabulosos anos. Entre os fados, o rumor de milhares de gargantas “aplaudindo”. Será que trouxe as chaves de casa? A capa negra de saudade bem traçada — nem uma ponta branca podia entrever-se —, com quatro dobras no colarinho, uma por cada ano de curso. À minha frente, serpenteava um mar negro pelas ruas da Sé Velha, tapando cada pedra do largo. Até os poucos futricas que por ali furavam vestiam de escuro. O negro das capas e o branco da lua. Não sou de chorar. Não torço nem quebro. Mas, naquela noite, nem as estrelas seguraram as lágrimas de todos os que deixavam a Academia. Um regato de pérolas transparentes com que tecemos, para sempre, um fio de laços inquebráveis. Pelo rosto do cantor, corria outro fio, o do dejeto da pomba, acordada pelo barulho. Uma hora depois, o último acorde da última guitarrada. E, então, em uníssono, milhares de gargantas responderam à voz de comando do FRA da praxe. Fitas soltas das pastas, a adejar, bem no alto, numa tela das cores da cidade: vermelho, branco, azul, roxo… as cores de todos os cursos. Azuis escuras, as minhas. A mão esquerda a acariciar todos os muitos rasgões da minha capa, feitos com os dentes, como exige a praxe, e a deter-se naquele em forma de estrela.  

A festa prosseguiria durante uma semana com as noites no Parque, o Baile de Gala, a Garraiada, o Chá Dançante e o Sarau, atingindo o clímax no Cortejo. No largo da Sé Nova, depois da Queima do Grelo, num penico — o nabo, previamente roubado no mercado, com a conivência das vendedeiras —, milhares de estudantes universitários e uma centena de carros temáticos, enfeitados com flores de papel coloridas nos tons dos vários cursos, desceriam os Arcos do Jardim, a Praça da República e a Avenida. Virariam à esquerda, para passarem em frente à Câmara e à Igreja de Santa Cruz, e seguiriam até à Portagem. Caloiros e doutores à frente do respetivo carro, quartanistas em cima dele e nós, os quintanistas, de cartola e bengala, atrás. Apinhada nos passeios, a multidão saudaria os estudantes; os familiares oferecer-nos-iam ramos de flores nos tons dos nossos cursos e levariam uma ou outra borrifadela de champanhe. Os jardins, os cafés, as repúblicas, onde, tal como nós, se tinham reunido, em tertúlias, o Eça, o Antero, o Nobre, o Régio e tantos outros.

Mas ainda não. Deixe-me, leitor, ficar mais um pouco naquelas escadas, ficar no choro de uma balada, num tempo que acabou e que não volta, guardar em mim o bater da velha cabra, os segredos desta cidade. Desenhar o adeus. Na verdade, muito de nós ficou naquela noite, porque Coimbra tem mais encanto na hora da despedida.

Eh, malta, por Coimbra não vai nada, nada, nada? Tudo! Mesmo nada, nada, nada? Tudo! Então, com toda a cagança, toda a pujança, do fundo do coração, aqui sai um Fra: fra, Fre: fre, Fri: fri – Fro: fro, Fru: fru! Fra, fre, fri, fro fru! Ali quali, quali, quali! Ali quali quali quali! Chiribiribi tata tata! Chiribiribi tata tata! Hurra, hurra, hurra!

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Ana Paula Campos

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