Abominava a idiota tradição importada dos americanos. Por ele, receberia qualquer criança
que lhe batesse à porta apontando-lhe os canos da caçadeira. À esposa, no entanto, brilhavam
os olhos sempre que ouvia a irritante frase.
«Doçura ou travessura.»
Os pequenos fantasmas, vampiros e lobisomens serviam-se das guloseimas que ela acumulara
em tal quantidade que daria para tornar diabéticos todos os habitantes da aldeia.
Quando, após mais um toque da campainha, ele a ouviu gritar, julgou ser apenas mais uma
tentativa de animar os monstros imberbes. Mas ela não parava. Gritava, berrava, uivava.
Histérica como uma hiena. Ele correu a acudi-la, contrariado.
À porta, de mão estendida, estava uma zombie. Cabelos desgrenhados, olhos vermelhos,
carnes podres. Ele ficou impressionado com a caracterização, até a reconhecer.
— Luísa. — Murmurou.
E a esposa gritava e chorava e repetia, Luísa, Luísa, Luísa, minha Luísa.
“Como te desenterraste? Como voltaste a pôr a cabeça no lugar? Como percorreste todos
estes quilómetros? Como estás aí, após tantos anos?” Perguntava o homem para si próprio,
mas apenas lhe saía um som.
— Luísa.
A criança arreganhou os lábios e falou:
— Olá… Pai.
Não tinha língua.
Nuno Gonçalves
- Novembro 2022