Adoro a morte

Adoro a morte

Adoro a morte. É tão…fácil. E nós, humanos assustados, que tanto a tememos… chega a ser ridícula a facilidade com que corremos em direção a ela. Patéticos. Discordas? Bem, hoje o sono está a tardar e não tenho nada melhor para fazer. Será mais simples mostrar-te. Acompanha-me, e vais perceber o meu ponto de vista.

Descemos à rua. O Chiado, a esta hora, está deserto, mas a diversão não é por cá de qualquer forma. Deixa-me só fechar o casaco, e é melhor fazeres o mesmo que é sempre fresco de madrugada. Subimos até à Praça Luís de Camões e aqui conseguimos perceber a vibração da noite. Senta-te comigo, aos pés da estátua. Nah, os que por aqui estão são dispensáveis. É um espaço demasiado amplo, de qualquer forma. Ficamos muito expostos. Ouve, fecha os olhos e percebe de onde vem o som. Sim? Identificas? É para lá que vamos, onde a decadência dura. Por esta altura, nenhum dos resistente estará sóbrio. Espera, antes de entrarmos no bairro cobre-te com o capuz. Isso, bem puxado sobre a cara, exatamente. Nas sombras a nossa face é um vazio, que imagem linda…

Caminhar devagar, sempre. O ritmo da passada, quando é decidido e lento, dá-nos poder, o poder do controle sobre o rumo que a caçada terá. Não, nada de pressas. Olha o grupo, daqui de longe, estuda-os. Bastam alguns minutos para identificares o mais fraco, o que facilmente se desgarra do rebanho. Repara… aquele. Vês o magrito encostado à parede? Sim, o que está a vomitar, esse mesmo. Nada inteligente. Daquela esquina conseguimos que deixe de ver os colegas sem que se mova, basta aparecer pela rua de baixo. Silenciosos, não deixemos que nos veja (para isso, o lixo empilhado por estas ruas é extremamente útil) e, quando voltar a erguer a cabeça, estamos a dois passos. Bam! Num segundo está a vomitar, no seguinte tem um vulto encapuzado à distância de um braço. O ar de pânico! Delicioso. Repara, vai voltar as costas e correr em frente, é um clássico. Raramente estão suficientemente lúcidos para encontrarem o caminho de volta ao bar, que por esta hora é o único aberto. Deixamo-lo correr e observamos. Espera… uma caçada vive da paciência. Vejamos como se comporta… lá está, virou. Curiosamente, voltam quase sempre à direita. Percebeste em que rua virou? Isso, agora é altura de correr. Sempre por uma paralela, ganhando velocidade, conseguimos surgir-lhe à frente com um quarteirão de avanço. Ah! O olhar dele. Pânico! Excelente trabalho. Conseguimos, o gajo já está borrado de medo. Agora é só continuar atrás dele. Seguros e constantes, postura ereta. Olha pra ele, já mal consegue correr a direito. Medo e álcool são uma infusão poderosa. Tão fácil…

Resta encaminhar este cadáver ambulante para o seu destino. Repara, consegues guiá-lo usando a tua posição na rua: se caminhares ao centro, ele irá em frente, se estiveres próximo da margem direita, ele vira à esquerda, e vice-versa. Simples, vês? Para onde? Ah, para onde… hoje tenho em mente uma coisa especial, digna do Louvre. Príncipe Real, guiamos o gajo para lá. Sim, para os jardins, o São Pedro de Alcântara. É isso mesmo, estás a imaginar o plano?

Os jardins são nossos amigos. Deve ser a proximidade da natureza que lhes dá qualquer coisa de primitivo e selvagem durante as horas mais escuras. Como treme, o moço. Continua a caminhar certinho, basta isso. Casaco fechado, capuz bem puxado, mãos nos bolsos e passada segura. Implacável. O gajo treme e agarra-se ao gradeamento como a uma tábua de salvação. Perfeito. É só continuarmos a caminhar. Lentos, felinos. Já sobe a grade, vês? Isso mesmo, nós não paramos.

Pelo barulho, não caiu em cima de um carro. Vá, não queiras perder a melhor parte! Baixamos o capuz, que não queremos assustar ninguém, e descemos a rua que contorna o jardim com calma. Pelo caminho, avisamos o 112: «Estou? Olhe, não sei o que se passa, mas gritaram! Não é habitual, não durante a semana. Acho que alguém se magoou, venham, por favor! Onde? No Jardim de São Pedro de Alcântara, moro mesmo em frente. O meu nome? Estou? Não ouço. Sim?». Feito. Bem, se tivéssemos deixado um alvo, o gajo não teria conseguido ser mais certeiro. Olha que maravilha! Conseguiu ficar empalado no gradeamento. Belo salto. E agora? Agora escolhemos de onde queremos ver o espetáculo.

O som das sirenes acalma-me. Laivos de azul e amarelo iluminam o corpo que se dobra, num ângulo impossível, sobre a grade. O brilho das lanternas acentua o encarnado do sangue que desenhou uma poça disforme no passeio e escorre pelo muro. Um quadro. Belíssimo.

A morte. A derradeira obra de arte.

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Diana Almeida
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