Há determinados rituais humanos desconcertantes. Lavar o carro ao fim de semana quando o mundo decide entrar nessa sintonia bizarra é um deles.
Diga-se em bom rigor, este ritual não é uma invenção recente. Recordo-me bem do meu pai munido do seu balde de pega laranja, esponjas multicolores e toda uma miríade de produtos, às voltas milimétricas em torno da sua viatura nas manhãs de domingo. Era um espairecimento, como ele mesmo dizia. Mas o tempo era seu. Começava e terminava quando desejava, sem filas ou esperas e ainda sobejava vontade para ligar o rádio. Nunca se rendeu às lavagens automáticas, «estragam a pintura», afirmava. Mesmo o táxi, a sua empresa andante, era retocado semanalmente com os mesmos cuidados de quem lava um animal de estimação — um cão —, cá está, que os gatos são pouco dados a banhos.
Muitos são os que se lamentam «o fim de semana é curto» ou «o tempo não dá para nada». Possivelmente, são essas mesmíssimas almas que se se predispõem a deixar comer fatias da sua vida enquanto preguiçam horas na fila de um centro de lavagem automática.
É vê-los, homens e mulheres, jovens e, já não tanto, de mangueira na mão, de baixo acima, de cima abaixo, a limpar resquícios de pó, lama e tudo o que esteja a mais nas jantes, vidros ou capô. Será também uma forma de exercício?
«Faço isto há trinta anos. Durante a semana não tenho oportunidade e gosto de entrar na segunda-feira de carro limpo. É como se lavasse a alma.», eis o que me respondeu num sorriso lavado, o desconhecido da frente.
Talvez haja uma explicação onírica para este ditame (não sei, se só português). O automóvel é a montra ambulante do seu proprietário, o seu cavalo metálico. Talvez seja igual à sensação que os nossos antepassados sentiam ao limpar o seu equídeo, fortalecendo o laço com a montada. Limpar sempre o cavalo de cima para baixo, de frente para trás, em movimentos lentos e curtos e no final, passar a luva para dar brilho a todo o corpo, uma dança parecida com a limpeza de um veículo, não?
Desfilar de carro lavado será o equivalente a aparecer de camisa limpa, colarinho engomado e botões de punho a preceito ou, no caso das senhoras, de vestido vermelho plissado e salto alto.
Pessoalmente, gosto de um carro limpo por fora e por dentro, por uma necessidade de controlo. É o meu espaço, preciso tê-lo como gosto. E neste domingo, pensei limpar o cavalo metálico com uma certa urgência, estava irremediavelmente sujo: pó por fora e resquícios de bolachas de arroz e côdeas duras espalhados no banco traseiro. Crianças…
Esqueci-me do ritual do fim de semana, das filas de quem precisa de lavar o carro e a alma. Não me prolonguei na espera. Tinha tempo, mas o tempo é urgente para o essencial. Lavar o automóvel, não o é. Esqueci a urgência e planeei a limpeza para uma dessas noites despercebidas. Pensei em emprestar um livro (tenho sempre um pneu e, pelo menos um livro suplente no porta-bagagens) ao senhor idoso que permaneceu estoico na fila. «Tome. Leia. Empresto-lhe. Deixo-lhe o meu número de telemóvel. Ligue-me quando terminar.» Solidariedade, empatia para com um estranho.
É que o tempo passa rápido à medida que o tempo de vida avança, e nada como aproveitá-lo na companhia da alma lavada de um livro.
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Texto publicado no Repórter Sombra