Tudo passa.
A vida continua.
Não quer dizer que fiquemos como dantes. Diria que é como perder um braço. Como se nos cortassem um braço. Não, cortassem não. Cortar é muito limpo, muito cirúrgico. Como se nos arrancassem um braço. Porque é mesmo assim, não é? Arrancado à bruta, com tendões rasgados, nervos estirados, músculos estraçalhados.
Não achas uma boa metáfora? Bem, foi o melhor que arranjei e olha que penso nisto há muito tempo.
Percebo-te. Um braço, afinal… Para que serve um braço? Tenho outro. Um braço não goza com este meu jeito desengonçado e hesitante. Não poderia jogar futebol contra um braço, como fazíamos, chovesse ou fizesse sol, com a bola meio cheia e meio rota. Um braço não solta aquelas tuas gargalhadas, que te transbordavam pelo nariz. Um braço não é um irmão.
Por outro lado, repara, se me arrancassem um braço, também ficaria incrédulo a ver algo que era parte de mim desaparecer abruptamente. Também sentiria uma dor excruciante. Mais ligeira, com certeza. E também deixaria uma cicatriz, funda, disforme, que esconderia por baixo da roupa e tentaria não olhar para ela a toda a hora, evitando acordar dores antigas.
Sim, tens razão, continua a ser diferente.
Porque se o agente me ligasse e dissesse “Estou a falar com o Senhor Nuno? É para lhe dizer que lhe arrancamos um braço.”, dir-lhe-ia “Como assim?” e tentaria argumentar e convencê-lo que seria boa ideia voltar a colocá-lo no sítio, que provavelmente exageraram e era desnecessário terem-me sujeitado a isso. Conseguiria, apesar do absurdo da situação, falar com ele usando palavras, palavras mesmo, e não grunhos, gritos e soluços.
Porque se eu tivesse de ligar à mãe a dizer-lhe “Olha, mãe, arrancaram-me um braço.”, não me custaria nada. Nadinha. Ela não ia gostar, claro, porque me criou com dois braços perfeitamente funcionais e ninguém gosta de ver um filho perder um pedaço, mas lá se resignaria e talvez me dissesse para me agasalhar ou assim. Agora, dizer-lhe que tu…
Porra, que me arranquem o braço. Para que serve um braço? Faria tudo igual só com o outro, a sério. Escrever? Fácil. Cozinhar? De certeza que conseguia. Tocar guitarra? Bom… Talvez fosse difícil, mas deve haver vídeos a explicar. Operar? Eh… Deixa lá isso.
Ah, dizes que também levo a mesma vida sem ti? Não, pá. Levo UMA vida sem ti. Não é a mesma vida. Porque nesta vida, não estiveste no meu casamento nem conheceste os teus sobrinhos. É outra vida. Com muitas alegrias, claro. Mas outra vida. Sem ti.
Olha outra que me lembrei. Será que se me arrancassem o braço, também teria de ouvir “Isso acontece a todos”? Talvez. Mas aí eu responderia, irritado: “A todos? Acontece a todos? Então não vos vejo aí todos com dois braços?! Escusam de os esconder nos casacos, ou atrás das costas. Acontece a todos. Grande lata.” Até era capaz de me exaltar e gritar, em vez de ficar calado agarrado à barriga, incapaz de articular uma réplica.
Ou será que me diriam “Era o que ele queria, tens de respeitar”? O braço queria ser arrancado, é? E mesmo que quisesse, não me faz falta na mesma? Ah, como o braço se foi por vontade própria, até fico feliz por ele! Que parvoíce. E se sou egoísta? Pois claro que sou! Porque o braço me faz falta. Porque tu me fazes falta.
Ou diriam “Vais ver que isso passa.”? Como passa? O braço volta a crescer? Mas serei eu uma estrela-do-mar? Perco um braço e cresce outro? Ou acham que posso ir comprar um substituto? Ou há por aí dadores de braços?
E agora podem dizer “Estás a ver como a vida continua e como podes voltar a ser feliz?”. Ora, pois claro, mas olhem para isto. Falta-me um braço!
E a minha filha nunca encontraria uma foto do meu braço. Como quando encontrou uma foto tua, todo carrancudo, como ficavas sempre. A minha filha, tua sobrinha, e perguntou:
— Quem é este, pai?
— É o meu irmão.
— Porque é que nunca conheci o teu irmão?
— Porque já morreu, filha.
— Ah.
E parou, sabes, como fazem as crianças, quando engolem uma informação nova e tentam arranjar espaço para ela. Continuou:
— Como o pai do Simba?
— Isso mesmo.
— Então podemos falar com ele nas estrelas?
— Acho que sim, filha.
E abracei-a.
Com os dois braços.
