O que a poesia pode fazer por si

Os poemas são sementes de esperança feitas de vontade, fazem eco, apertam-nos a garganta. A verdadeira poesia é intemporal, lê-se em nós.

O primeiro encontro que tive com a poesia foi na adolescência. Nem me recordo pelas mãos de quem, provavelmente, das bibliotecárias da minha cidade, já que em casa a poesia era inexistente.

O amor sofrido de Florbela Espanca foi meu, a ousadia de Ary dos Santos pertenceu-me, a indefinição de Ricardo Reis, minha. Os meus desejos não se cumpriram e mais não me foi dado; o Fado impôs-se à minha vontade, mas sobrevivi.

Com Ricardo Reis descobri aquele que desde então passou a ser o meu lema de vida.

Para ser grande, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive.

 

Julguei-me poeta de amores errantes, destinos cruzados por cumprir. As palavras atropeladas, gritos de alma, libertavam-me. Escrevi páginas e páginas que não resistiram a uma cave húmida e a dentes roedores. Melhor assim. Não tenho a certeza se me reconheceria nessas palavras.

A poesia pode ser um clamor adolescente derramado nas folhas, mas é mais. Muito mais. Os poemas são sementes de esperança feitas de vontade, fazem eco, apertam-nos a garganta, trazem-nos as memórias do que sempre fomos, pois nem sempre o espelho mostra lírios brancos. A verdadeira poesia é intemporal, lê-se em nós.

Quando entramos no poema o tempo estagna, o silêncio instala-se, os pensamentos estancam num só friso. É preciso escutar as palavras, parar, ficar no silêncio do outro, que também somos nós e, aí, aprendemos a ser mais. A poesia amplia o nosso lado intelectual e afetivo. Traz-nos novas metáforas, engrandece-nos a alma, amansa-nos — no bom sentido. A poesia inspira-nos a procurar significação, identificação nas palavras que se tornam tão mais do que meros símbolos ou sons.

O mais belo é que a poesia entra na nossa vida quando menos se espera. Comigo foi assim, na juventude. Passados tantos anos, a poesia recomeçou a espreitar de mansinho na estante literária. A primeira achega veio em 2020, com «A Íris Selvagem», de Louise Glück e o seu prémio Nobel da Literatura. As suas «Matinas» e «Vento em fuga» transformaram-se em bétulas do meu jardim. Recentemente descobri Adília Lopes e a minha história começou a ser outra.

Não resisti em incluir no clube de leitura «Encontros Literários O Prazer da Escrita», um ciclo dedicada à poesia contemporânea portuguesa e o deslumbramento não mais parou.

Graças ao clube de leitura (é esta a magia dos clubes de leitura), descobri a maravilhosa Ana Luísa Amaral e o seu «Ágora» e «Mundo»; Márcia e «As estradas são para ir»; e o «Regresso a Um Cenário Campestre», de Nuno Júdice. Li as «Cartas a um jovem poeta», de Rainer Maria Rilke. Como atrás de uma sugestão literária vem sempre outra, entrei pela mão gentil de Ana Luísa Amaral no universo de Emily Dickinson.

A poesia nem tão cedo será excluída do que leio. Reconheço todo o seu poder nestes tempos em que tudo corre e é tão pouco, o que nos faz refletir, olhar para cá. Desejo tremendamente que se sinta tentado em conhecer os poetas mencionados. Sei o que a poesia poderá fazer por si.

PRECE NO MEDITERRÂNEO

Em vez de peixes, Senhor,

dai-nos a paz,

um mar que seja de ondas inocentes,

e, chegados à areia,

gente que veja com coração de ver,

vozes que nos aceitem

É tão dura a viagem

e até a espuma fere e ferve,

e, de tão alta, cega

durante a travessia.

Fazei, Senhor, com que não haja

mortos desta vez,

que as rochas sejam longe,

que o vento se aquiete

e a vossa paz enfim

se multiplique

Mas depois da jangada,

da guerra, do cansaço,

depois dos braços abertos e sonoros,

sabia bem, Senhor,

um pão macio,

e um peixe, pode ser,

do mar

que é também nosso

Ana Luísa Amaral

Poderá encontrar o original deste texto na revista Pontos de Vista.

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Analita Alves dos Santos

Inspiro escritores a sentir mais confiança na sua escrita, a evitar a procrastinação e a partilhar as suas histórias com o mundo.

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