Há muitos anos, li A História da Minha Vida, de Helen Keller, e senti nesse momento uma profunda gratidão por estar dotada de todos os sentidos.
Para quem desconhece, Helen Keller (M. 1968) nasceu em Tuscumbia, Noroeste do Alabama, Estados Unidos, no dia 27 de junho de 1880, e foi a primeira pessoa cega e surda a frequentar uma instituição de ensino superior. Foi escritora e ativista social.
Formou-se em filosofia e lutou pela defesa dos direitos sociais, das mulheres e pessoas com deficiência. Filha de um capitão aposentado e editor do jornal local, contraiu aos 19 meses de idade uma doença desconhecida, diagnosticada como febre cerebral, que a deixou cega e surda.
Foi a perseverança da sua professora Anne Sullivan e a grande vontade de aprender de Helen Keller que a retiraram do silêncio a que estaria destinada pela sua condição de cega e surda.
A história de vida de Helen Keller é exemplo de resiliência, na qual os livros que descobriu em braile ou soletrados palavra a palavra na sua mão desempenharam um papel essencial para estimular os outros sentidos.
O que viu dentro de si, regado pela imaginação, permitiu-lhe contemplar com igual profundidade a beleza do que existe, tal como nós a vislumbramos no que é abstrato.
«Numa palavra, a literatura é a minha Utopia. Ali, não sou deficiente. Nenhuma barreira dos sentidos me exclui do discurso doce e gracioso de meus amigos livros. Eles me falam sem embaraço ou constrangimento. As coisas que aprendi e as que me foram ensinadas parecem ridiculamente sem importância comparadas com “os grandes amores e as caridades celestiais” dos livros.»
A forma como Helen Keller descrevia o mundo que a rodeava, o qual não conseguia ver ou escutar como qualquer outra pessoa, é avassaladora. Recordo a beleza narrativa das descrições de flores ou do irromper de uma tempestade, quando um dia subiu a uma árvore e o cheiro da terra, o abanar da árvore e os gravetos partidos a tocar-lhe no rosto indiciaram o temporal.
«Que alegria era perder-me naquele jardim de flores, perambular feliz de um local para outro até que, esbarrando subitamente numa bela videira, eu a reconhecesse por suas folhas e flores e soubesse que era a videira cobrindo a dilapidada casa de verão na extremidade do jardim! Ali, também, havia trepadeiras de clematites, jasmins pendentes e algumas raras flores doces chamadas lírios-borboletas porque suas frágeis pétalas pareciam asas de borboletas. Mas as rosas eram as mais adoráveis de todas. Jamais encontrei nas estufas do Norte rosas tão maravilhosas como as rosas-trepadeiras do meu lar no Sul. Pendiam em compridas guirlandas de nossa varanda, enchendo todo o ar com sua fragrância, sem serem afetadas por nenhum outro cheiro; e de manhã bem cedo, lavadas pelo orvalho, eram tão macias e puras que eu não podia deixar de imaginar se não se assemelhavam aos asfódelos do jardim de Deus.»
Quem não gostaria de descrever desta forma as naturezas que os nossos privilegiados sentidos alcançam?
Conseguimos ver, escutar, sentir, saborear, cheirar, mas, não raras vezes, os leitores recebem textos desprovidos do festim das sensações e emoções.
E o que dizer da sinestesia? Essa figura de estilo rica e ignorada, em que as sensações correspondentes a certo sentido são associadas às de outro sentido. Conseguirá, porventura, esquecer o cheiro áspero das primeiras romãs de outubro?
«Escrever é observar com todos os sentidos», mas viver também.
Quantos de nós vivem entorpecidos, ignorando a singularidade do que os rodeia? Sem escutar o saltitar do pássaro, sentir o sopro da Lua na pele nua, o aroma do alecrim a incandescer, o sabor das ondas numa ostra ou a visão de uma borboleta a acariciar uma flor.
O pecado de não aproveitar a magia de todos os sentidos é grande para qualquer mortal. Oriunda de um aspirante a escritor é um pecado sem remição.