Um dos grandes mistérios da criação literária é de onde e como surgem as ideias para as histórias.
Quando me questionam sobre este assunto, instigo o meu interlocutor a viver em modo Sherlock Holmes, com os cinco sentidos bem despertos ao que o rodeia — às conversas cruzadas nos cafés, nas filas, nos detalhes daquela pessoa que passou por nós em qualquer esquina da vida, ao artigo de jornal onde o nosso olhar se demorou.
O material das histórias está no palco da vida, mas não só.
Como afirma António Lobo Antunes, «Toda a invenção é memória. […] Quem nos arranja os materiais é a memória. As tais coisas de que a gente não fala e aparecem nos livros, de maneiras desviadas.».
E assim, entramos num patamar mais profundo do «mistério da criação literária»: o que experienciamos no mundo lá fora mistura-se com o mundo dentro de nós, com as nossas memórias. São as nossas vivências e as nossas reminiscências que nos auxiliam. Por isso, viver e ler são tão importantes para quem deseja escrever.
É curioso como certas rememorações ficam em nós e surgem-nos no papel quando menos esperamos. Talvez já tenha ouvido falar da psicografia, nas descrições da alma, na escrita dos espíritos pela mão de um médium, mas não irei por esse caminho. Ficarei num meio-termo.
Na criação artística há o lado racional, da oficina, da escrita e o inesperado que nos conduz, um lado mais irracional. Quem não sentiu já uma personagem a assumir um rumo diferente daquele que tínhamos inicialmente previsto? Ou, que o digam os poetas: para eles, o primeiro verso não lhes pertence, «é a mão que escreve».
A inspiração anda lado a lado com a transpiração, com o trabalho; isto é indissociável principalmente para os romancistas. Não se pode negar a existência de uma ideia transcendental. O grande problema é quando se fica à espera da inspiração e ela não surge. É aí que a rotina e o hábito da escrita nos salvam.
O escritor é como um atleta de alta competição. Tem de treinar, treinar sempre, todos os dias, mesmo que não vá a jogo. É esta perceção, que separa um amador de um profissional, seja qual for a profissão. O ofício da escrita não é exceção.
As memórias vibram e manifestam-se fora de nós nas histórias que criamos.
Quando observo os meus textos, apercebo-me, que na maioria das vezes, viajam entre o sagrado e o profano. E eu sei o por quê. Filha de emigrantes, parte da minha infância foi passada com a avó paterna, senhora mui religiosa, que estudava a Bíblia e me ofereceu aos quatro anos, o meu primeiro livro, onde conheci Adão e Eva, Abraão, Moisés, Sansão e Dalila, Noé, Jesus Cristo, os cavaleiros do apocalipse e tantas outras «personagens» e «histórias bíblicas» de forma serôdia. Quem conhece as histórias da Bíblia sabe como por lá habitam a traição, a luxúria, o adultério, a vingança, o mistério, o sofrimento, a dor, mas também o amor, a esperança, a redenção, a humildade e a amizade. E são essas histórias, misturadas com o que vivo, sinto, vejo, leio, sou, pressinto e interpreto, que transparecem nas páginas que escrevo quando me sento no meu recanto. É assim comigo. É assim com todos nós.
«Aprende-se a escrever, lendo. E também é necessária uma grande humildade face ao material da escrita. É a mão que escreve. A nossa mão é mais inteligente do que nós. Não é o autor que tem de ser inteligente, é a obra. O autor não escreve tão bem quanto os livros.»
– António Lobo Antunes