Sou mulher, casada, tenho duas filhas, nunca fui vítima de violência doméstica, mas conheço mulheres que já foram.
Uma dessas mulheres encontrei-a por acaso, um dia na rua, de olho roxo e nódoas negras nos braços. Disse-me que tinha caído das escadas. Acreditei. Quando a situação se repetiu, contou-me a verdade: o marido batia-lhe por ciúmes. Não gostava que ela trabalhasse fora de casa. «Só» a agrediu duas vezes. Antes que a terceira agressão acontecesse, pegou nos dois filhos menores, enviou-os para fora do país, saiu de casa, trocou de telemóvel e conseguiu, a tempo, recuperar a sua vida. Nem todas as histórias de violência doméstica terminam assim. Muitas acabam em homicídio.
A Resolução 54/134 da Assembleia-Geral das Nações Unidas, de 7 de Fevereiro de 2000, declarou o dia 25 de Novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, um dia que só por existir deveria servir de alerta.
Em 2020, de acordo com os cálculos efetuados pelo Observatório de Mulheres Assassinadas (OMA), da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), tendo como base as notícias reportadas nos media entre 1 de janeiro e 15 de novembro, foram assassinadas 30 mulheres, 16 delas em contexto de relações de intimidade.
De acordo com os dados de 2020, em 63% dos femicídios já havia violência prévia e em 80%, essa violência era do conhecimento de outras pessoas; em 40% tinha havido ameaça de morte.*
Muitas vezes, tudo começa com uma «simples bofetada». A vítima sente um misto de revolta, negação, vergonha e, uma crença irracional: aconteceu uma vez, sem exceção, não se repetirá! E assim, é ignorado o primeiro sinal que mostra que o homem que se ama, não é o que se pensa ser.
«Como passou algum tempo sem voltar a ser agredida, estava decidida a enterrar o assunto, mas bem depressa, levei outra bofetada, que voltei a esconder. O primeiro sentimento remeteu-me para uma emoção que era o oposto do que seria lógico. Sentia muita vergonha. Escondi de todas as pessoas. Era um segredo guardado a sete chaves. Expressamente proibido de ser contado até à minha melhor amiga. Não podia contar que tinha levado uma bofetada que me deixou com sangue a escorrer pelo nariz. Inocentemente naquela época achava que iam fazer troça de mim. Ao esconder, apenas abri portas para as seguintes. As agressões físicas trouxeram as verbais e as emocionais que me tiravam a vontade de ser eu.»
«Era frágil e pensava que não tinha forças para me defender, o que me transformava num boneco onde o meu marido descarregava a sua própria frustração. Debaixo daquela fúria, ele desferiu golpes de todas as formas sem olhar onde me acertava. Comecei a temer que me matasse. A forma como me batia tornava-se cada vez mais forte e chegou a altura em que as nódoas negras deixavam a nu aquilo que eu teimava em esconder. Uma fraqueza começou a alimentar uma vontade de desistir de tudo. Aniquilei-me enquanto mulher. Passei a viver escondida. Até de mim, duvidava. Culpava-me por ter deixado que as coisas chegassem àquele ponto. Sentia nojo da pessoa que era. Culpava-me de ser feia, e que devia ter percebido isso: nunca devia ter obrigado ninguém a viver ao lado de uma mulher, que era a mais feia que existia.»
Estas, não são palavras ficcionadas. São palavras reais de uma mulher guerreira, que por amor aos seus filhos conseguiu fugir de uma realidade cruel, que a levaria à morte certa.
As mulheres vítimas de violência doméstica vivem um turbilhão de emoções: raiva, revolta, culpa, receio do julgamento alheio, um sentimento de inutilidade, que muitas vezes as conduz a um profundo estado depressivo com mazelas para a vida.
São mulheres que vivem em desassossego onde deveriam sentir-se mais seguras — a sua casa. Quando a vítima percebe que tem um louco a dormir ao seu lado, nunca sabe quando e o que pode acontecer. O medo e o pânico tornam-se os seus maiores e temerosos companheiros.
Existe igualmente um enorme sentimento de impotência: como não se sentem protegidas pela Lei sentem-se incapazes de resolver o problema.
«Viver a violência é sem dúvida, uma dor sem limites, mas constatar a ineficácia da Justiça é agonizante. Ler a tristeza nos rostos dos agentes da autoridade sempre que a sua presença não surtia resultado, chegava a comover-me. Se eu tivesse sido assassinada seria mais uma vítima de violência doméstica e da justiça. Não podia dormir, o pouco que dormia era sempre em estado de vigilância. Nunca sabia se iria acordar na manhã seguinte.»
Para estas mulheres, não existem muitas saídas: ou tomam a atitude de fugir ou sofrem as consequências. Há a tendência para desistir de lutar. Se não existir uma força maior que alimente esse querer, o acreditar numa outra realidade, a vítima acaba por não agir e entrega-se à resignação.
E depois…O fim trágico pode ser este — uma manchete no jornal:
«Uma mulher, de 38 anos, foi morta à facada, esta quinta-feira, em Portimão. O suspeito é o companheiro da vítima, que já foi detido pelas autoridades.»
In Jornal de Noticias, 26 de novembro de 2020
Se estás a ler estas linhas e a pessoa que tens ao teu lado maltrata-te, lembra-te: nunca deixes de te amar, nunca deixes ninguém fazer-te sentir menor do que aquilo que és: uma Mulher poderosa, que merece acima de tudo, amar e ser amada. Hoje, e sempre.
* Fonte: https://www.publico.pt/2020/11/23/sociedade/noticia/2020-assassinadas-30-mulheres-16-contexto-violencia-domestica-1940259