Desassossego

 

Acreditava, com firmeza, que o monstro da luxúria já me tinha abandonado.

Ficavam longe os tempos das noites de inquietação, em que procurava incessantemente a paixão. Não pertenci a ninguém. Fui de todos os que me quiseram. Acima de tudo, fui de quem eu quis. Era feliz, livre, plena, segura de mim.

Agora, vivia num abandono consciente daquele lado mais obscuro, mais intenso. Uma mulher casada. Mãe de família. Três filhos para amar.

Mas tudo mudou no dia em que te conheci.

Sorriste.

Sorri de volta, desprendida. E senti algo que nunca imaginei voltar a sentir.

Procurei desesperadamente apagar a memória do teu sorriso inesperado. Afogá-la nos gritos das crianças, queimá-la no lume vivo do jantar, rasgá-la em pequenos pedaços invisíveis, espalhados pelos gemidos apócrifos nos lençóis do leito conjugal rotineiro.

Que poderias tu, Adónis, ver em mim além da aliança no dedo, o cabelo grisalho e as rugas de uma vida sentida?

Eu, sombra viva do que outrora fui; desgastada entre fraldas, papas e choros; afastada do impulso carnal que antes me movia, quase por puro instinto, tristemente substituído pela certeza mortal do doce amargo da rotina.

Antes, toda liberdade e fervor. Agora, mascarada, tristemente escondida sob o manto da falsa decência, disfarçando a simples necessidade de ser mulher, de desejar e ser desejada.

Quis o destino (ou o infortúnio, o futuro o dirá) que nos voltássemos a encontrar.

Mais uma vez, sorriste.

Mais uma vez, sorri de volta.

Nesse dia, não procurei afogar, queimar ou rasgar a tua memória abrupta. Olhei-me ao espelho. Procurei-te no meu íntimo, despida de pudor, mas nada encontrei. Enterrada sob anos de sorrisos forçados, carícias fingidas e beijos mal-amados, percebi que precisava de mais. Muito mais.

Precisava de ti. Mas deixei que o choque frio da realidade me despertasse.

Poderia a coincidência de sorrisos trocados, no acaso de uma esquina qualquer da cidade, transformar-se em algo mais? Como te reencontrar? Como confessar-me, finalmente rendida, à certeza do que o teu sorriso despertara em mim? Transfigurei-me. Já não me reconhecia. Era um corpo sem alma, privado do fogo da vida.

Deixei que a tua lembrança fosse lentamente arrastada pelo vento do tempo. E quase te perdi. Dever? Culpa? Ou simplesmente medo de ser recusada?

Lembras-te quando nos reencontrámos pela terceira vez e, do nada, disseste: “Preciso do teu contacto” — e escreveste o meu número na tua mão esquerda, enquanto me despias com o olhar, antes de seguires o teu caminho?

Já tinha passado um ano desde o nosso segundo desencontro. Trezentos e sessenta e cinco dias de desesperança.

Não imaginas quantas vezes, inventando mil desculpas, justificando uma ausência ou uma saída inesperada, procurei naquela esquina o sorriso que tinha devolvido a vida à mulher que ainda existia dentro de mim.

Agora sei. Não foram meros sorrisos, nem para ti, nem para mim.

Sabes a minha surpresa quando, às duas da manhã, recebi a tua primeira mensagem?

“Quero que me toques como se me conhecesses desde sempre.”

Não soube o que responder. Tinha esquecido as regras ocultas do jogo duplo. Das noites intensas, camufladas na tranquilidade dos dias. Entendes agora o meu silêncio?

“Quero sentir o teu coração debaixo do meu” — continuaste.

Aguardei, desperta, pela tua nova mensagem, determinada a responder com um frio e ríspido “por favor, deixa-me em paz”.

“Liga-me. Não consigo estar mais sem ti” — insististe.

Desisti. Reinventei a luxúria que sempre habitou em mim. Dei-lhe outro nome: de monstro, a centelha da vida; de trevas, a luz; de culpa, a prazer, por si só. Sem medos ou remorsos. Por isso, estou aqui.

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Analita Alves dos Santos

Inspiro escritores a sentir mais confiança na sua escrita, a evitar a procrastinação e a partilhar as suas histórias com o mundo.

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